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domingo, 28 de março de 2021

Agapito morreu!

 


Um belo dia, pelo menos diz que estava Sol...

                                                                          o que por si só não transforma os dias em belos, vá que pode estar Sol e o individuo ser atropelado por um camião de transporte de sacas de caracóis. Pumbas, ai que belo dia que foi, não? Para aqui todo partido no corredor do hospital, paredes meias com o covidário, ainda sai a pessoa dali para uma melhor, credo, cruzes, lagarto, lagarto, lagarto, e depois vem o inteligente e começa a escrever numa folha branca: Um belo dia. Se não era um pano encharcado naquelas beiças.

Um dia, o senhor Agapito Silva decidiu que não envelhecia mais. Dito assim parece estranho, mas vendo bem é uma decisão como outra qualquer. Não que a tenha comunicado ao Universo ou sequer aos parentes próximos. Tratou-se de uma tomada de consciência basto introspetiva e suficientemente ponderada, das que não precisa de testemunhas ou cobradores. Olhou para o espelho da casa de banho e disse:

- Porra, já chega, não envelheço mais. - e procedeu a desfazer a barba, matando o individuo do espelho que estava a ficar mais trôpego do que gostaria de admitir.

Só pelo olhar já se podia ter a certeza de que não haveria passos atrás, recaídas, segundas opiniões. Ao Agapito não iam encontrá-lo a envelhecer às escondidas em algum beco; ou a oferecer-se para ir passear o cão para poder ficar um pedaço mais velho pelo caminho, sem ninguém ver.

No fundo, podemos dizer que se tratou apenas do corolário de todo o pensamento agapitano, firmemente assente na falta de evidência acerca da sua própria mortalidade. Isto é, ainda estava por se provar que o Agapito também morria. Digamos que é um pensador de raiz muito liberal e individualista, pouco dado a comunas e generalizações no que diz respeito à morte. Quer dizer, lá porque toda a gente parece fenecer a dada altura, isso não significa que a Agapito lhe aconteça o mesmo. Pelo menos até acontecer, não fica nada fácil provar o contrário. E depois também não, pois que já Agapito não haverá para se lhe esfregar nas trombas o seu próprio falecimento. Postas assim as coisas, não parece nada mal para filosofia de - lá está! - vida.

O Tempo é que se compadece pouco com os disparates dos homens, embora manifestamente mais tolerante com os das mulheres, e segue imperturbável o seu caminho, naquela cadência de quem não está atrasado, mas também não vai de véspera. Passa, segundo antes de minuto, e passa e passa e ainda está para nascer quem que saiba para onde vai. De modo um tanto injusto, o Tempo caminha mas as sequelas ficam para os transeuntes e nem Agapito tem como lhes escapar. Apesar de tanta resolução e tão forte comprometimento, no que não dependia exclusivamente de si, não tinha como não enferrujar. 

E lá deu consigo de frente para o espelho de novo, outra vez desconhecendo o homem que o olhava de volta, significativamente mais velho do que ele próprio. Se há coisa pela qual os homens são conhecidos, é pelo seu espirito corporativo. Está certo que é uma bela treta, mas se estamos aqui para contar a história deste homem, não vamos agora perder o foco e pormo-nos a falar de outros, mesmo que seja esse indefinido que somos nós todos e, por conseguinte, é uma inexistência. Assumamos apenas que Agapito se compadece do amigo do espelho e se dispõe a ajudá-lo. 

Ora, se o vasto matagal peitoral está a ficar cheio de brancas e isso parece provocar-lhe alguma angústia, meu bom amigo, vamos lá arranjar uma solução. Como calculará, não é algo em que eu tenha alguma vez pensado, posto que, não sei se estaria informado, já há um bom tempo que deixei de envelhecer. Note que não é tão difícil como as pessoas pensam. Bem, tratemos do pelame que, de facto, não dá nada bom aspeto.

Assim deu Agapito uso à máquina zero e desbastou a bom desbastar, de tal maneira que mal se notavam quais os brancos e os pretos, todos pelos, todos iguais. Um autêntico manifesto antirracista onde antes se encontrava o protótipo do macho misógino e antiquado: tufos de cabelo a espreitarem pelas golas e pelos botões abertos das camisas. Raisparta se não era a mais perfeita metáfora de modernidade e esperança na espécie. Pensando à frente do maldito Tempo, e a talhe de foice da linha do olhar do Grande Lenhador Peitoral, o Depilador do Preconceito pousou as vistas em nova erupção de pilosidade, qual Amazónia do baixo ventre. Embora uniformemente negra, quem lhe pode garantir, oh senhor no espelho, que amanhã não cai um nevão nessas partes? Afinal, a própria Floresta Negra embranquece de Inverno, não? E quem diz a Sul do Primeiro Grande Corte, também se deve preocupar com o Norte e já precaver calvícies, entradas ou suíças grisalhas. Enfim, trabalhou a máquina uma manhã inteira e muito satisfeito ficou o senhor do espelho e, com ele, feliz Agapito por ter sido tão útil.

O nome não tenho a certeza qual seja, mas pouco importa. Aquele com que a batizaram, já se vê, porque o que lhe chamavam, toda a gente sabe. A parecer cada dia mais filha do seu mais que tudo, crê-se que a Agapita é vitima de um defeito da retina que a impede de deixar de achar piada ao seu homem, num sentido sexual do termo. Pelo menos a julgar pelas humidades que se lhe puseram, pese a surpresa, ao vê-lo assim tão limpo de vegetação. Transformada em clareira a densa floresta de antes, ficava a árvore bastante mais impressionante, sem múltiplos arbustos em redor. E assim, ignorando que cada dia que passava se pareciam menos com os amantes pubescentes que a mente de Agapito cristalizara, fizeram render por semanas a fio a dispêndio em eletricidade dessa manhã.

No resto das coisas que compõem a vida, fazia-se valer das ondas sucessivas de revivalismo. A música de que gostava ora estava na moda, ora era coisa para connoisseurs, ora voltava a passar na rádio. Com a roupa, o mesmo. Era pois deste modo que a vida passava por Agapito e Agapito não envelhecia.

...

Imaginam o choque no dia em que, no meio de uma algazarra qualquer sobre bola ou mamas, com meia Tasca aos berros, Agapito se encostou calmamente ao balcão, chamou-me para perto e sussurrou:

- Oh Silva, serve aqui uma taça de 3 Marias a este teu amigo. Deixa que morra na ilusão de estar rodeado de mulheres, Marias todas, uma vez que já não chego a casa a tempo de me entregar nos braços da minha. Diz-lhe que penso nela e que morro novo.

E morreu. Do silêncio que se fez quando caiu redondo no chão, ergueu-se, passado algum minuto e tal, a voz do Velho dos Sapatos, que é o homem mais velho que alguma vez existiu e que, assim por alto, já deve ter falecido umas onze vezes - descontando fanicos e estados catatónicos - pelo que é unanimemente reconhecido como especialista no assunto:

- Epá, tão novo, tinha a vida toda pela frente, foda-se.

Lá nos vemos na capela, nós os maduros retirados cá para o fundo. A Agapita tem tudo sob controlo e sempre que o ritmo de afazeres ameaça baixar, ela inventa uma coisa nova ou vem para ao pé de nós ouvir uma laracha e beber uma mini à socapa. Outro dia deixará que a dor se abata sobre a sua cabeça, mas hoje ainda não se sente assim tão corajosa. Alguém pede silêncio e entra um padre que se posta por detrás do caixão, de frente para a audiência, rechonchudo e de bochechas rosadas, olhar indiferente e um livrinho nas mãos. Cá ao fundo um pigarreia e outro funga, mas a pouco e pouco, no entanto rapidamente, toda a congregação está em silêncio. O homem de Deus toma a palavra:

- Irmãos, estamos aqui para prestar homenagem e dar descanso ao nosso irmão Agapito Silva. Mesmo que a saudade já se instale e a Alma vos pareça doer da sua ainda curta ausência, lembrai-vos que o nosso irmão vai desta para uma bastante melhor. Viveu uma vida longa...

Tudo estragado. Ainda havia o espírito de estar em transumância ou Charon preso em algum biscate de última hora, buscar cafézinho para Hades ou coisa que o valha, o certo é que saltou o falecido de dentro do caixão, para grande espanto da audiência e consternação do prelado, para o qual se virou Agapito, com a veia da testa a latejar, todo ele muito bem rapado, da cabeça ás partes baixas, e gritou:

- Velha é a puta da tua prima, oh boi do caralho.

Soprou um beijo à Agapita - que ameaçava soltar pinguinhas nas cuecas, dobrada sobre a barriga de tanto rir - e voltou a deitar-se, muito provavelmente para sempre.

...

Keep on to the kingdom of light...






sábado, 16 de fevereiro de 2019

A Declaração de Voto de Anastásio Silva



- Avancemos então para almoço... - O senhor Secretário sussurra ao ouvido do senhor Presidente, interrompendo-o. - Mesmo? Quem? Bom, parece que temos ainda uma inscrição. Falta a declaração de voto do senhor deputado Anastácio Silva. - Perscruta a câmara com o olhar entediado, sem fazer ideia de que de ala se levantará a voz que se interpõe entre o seu apetite e a chispalhada à transmontana das quintas-feiras.

- Anastásio, senhor Presidente. - Uma voz mais ou menos a medo. Os membros das bancadas da frente viram-se. Na verdade, todos se viram, exceto os integrantes da última fila. A esses basta-lhes entortar ligeiramente o pescoço.

- É mesmo Anastásio, com esse. - Encolhe os ombros no seu fato creme, nada slim, dos baratos, mas impecavelmente engomado e vincado. Desta narrativa distância, não se lhe vislumbra nenhuma nódoa na parte visível da camisa branca ou na gravata azul marinho. É um homem mais ou menos baixo, mais ou menos gordito, mais ou menos calvo, de grandes óculos com armação de massa que lhe filtram os olhos mais ou menos mortiços.

Não há naquela Casa da Democracia, do Povo, portanto, registo de que Anastásio Silva, deputado, tenha antes usado da palavra. Encontra-se uma inscrição, por alturas da primeira legislatura, mas infrutífera, dado o acaso de terem os dignos representantes da Nação se pegado à bofetada e a sessão sido interrompida com recurso às forças da ordem.
                                                                                 
                                                                                  (A propósito do que: ORDEM, oh Narrador! Voltemos à vaca fria, que se acaba a chispalhada antes de o senhor Presidente chegar e é o cabo dos trabalhos para aturar o homem de mau humor.)

- Como queira, deputado Silva. Pedia-lhe era que se despachasse que a nossa vida não é estar para aqui a ouvi-lo. Para além de que é de mau gosto fazer-nos isto a uma quinta-feira, mas você lá saberá de si. Adiante, faça lá a sua declaração de voto em relação ao decreto que entretanto já foi aprovado. Inclusivamente com o voto da sua bancada parlamentar. Entende a perda de tempo, senhor Silva? - O senhor Secretário cochicha ao senhor Presidente. - Sim, sim, bem sei. Acha que desconheço o regimento, senhor Secretário? - O outro encolhe-se. - Deputado Silva, estamos à sua espera.

...

- Em relação à recente votação do projeto de lei número... - Procura papeis, demora-se. 

- Todos nós conhecemos o número, ande lá para a frente. - Presidencial.

- Bom, trata-se da reintrodução da Pena de Morte, é isto. Tendo votado contra o sentido da minha bancada, e da maioria desta casa, por ser incapaz de contrariar o meu asco ao facto de poder alguém decretar a morte de outro alguém, sinto-me obrigado pela minha consciência a apresentar esta Declaração de Voto.

Senhor Presidente, senhores Deputados,

Votei contra por duas ordens de razão. A saber: Pessoal e Social. No âmbito da primeira, encontro motivações simples, como por exemplo, por indevido acidente da Vida, a hora errada, o local impróprio, a inveja parva, a ironia kafkiana, ver-me eu próprio confrontado com uma acusação e em vias de ser punido com pena máxima. Pior ainda, encontrar-se a prole em tal situação, justificada ou injustificadamente, creio que pouco me importará. Sabem vossas excelências que isto da Morte é tudo muito lindo, até que chegue aos nossos. Por amor à verdade, devo informar que, só por si, isto me levaria a votar contra, mesmo que não fique bem pensar o deputado tão nele mesmo, estando em representação do Povo.

Incomodado por tão profunda convicção me advir de motivos tão evidentemente egoístas, escavei mais fundo no meu âmago, salvo seja, Deus proíba, tentando perceber se outras razões fundamentavam a minha decisão. E sim, há todo um Universo de altruísmo e bem querer ao próximo que me leva a ser contra.

É certo que os assassinos psicopatas são uma praga, assim como os violadores e todos os que abusam das crianças, das muitas e todas horríveis formas pelas quais uma criança pode ser abusada. Não estando disposta, bem sei, esta câmara a debater sem hipocrisia o facto de termos uns que abusam mas pronto está bem, veja lá não se meta nisso outra vez e dê-me uma hóstia, vá com Deus o senhor importante e Nossa Senhora o guarde, veja lá não viole a Virgem, passo só deste raspão pelo assunto. 

Mas sim, há que punir grave e definitivamente os parricidas e os fratricidas e os icidas de toda a espécie, que a nenhum homem cabe tirar o sopro a outro. Quer dizer, menos se for na Guerra. Na Guerra é matar ou ser morto, mais bala menos míssil, a indústria prospera, o cirurgião cose, o político, que não vós, que não vós, rebola no esterco, o soldado apanha o balázio com a testa, não se vai agora condenar quem lho atirou. Pela Graça de Deus. É muito provável que tenha sido. Sou assim estúpido desde pequenino e isto de matar a mim soa-me sempre ao mesmo. Mas têm Vossas Excelências tido o cuidado de me ir ensinando alguma coisinha, como fica provado.

Sou compelido a não esquecer os tolinhos sem consciência, os traficantes... talvez não os de armas, que acharão vossas excelências? Os tarados de tipo diverso e diversas religiões, os drogados com instinto assassino, os extremistas aproveitadores e o que se aproveitam à grande dos extremos, as pessoas que dizem "prontos" e "fostes", os alérgicos a água e sabão, gente que come com a boca aberta e palita os dentes com a língua, os sem escrúpulos e sem moral, os corruptos e mafiosos, os violentos de modo geral, os que batem nos cônjuges, nos namorados, nos amantes, nos colegas de escola, os que não têm coração. - Um gole de água. 

- Também os que guardam lugar nas praças de alimentação, os que passam à frente nas filas, os homofóbicos, os fóbicos todos, os maricas intolerantes, as vítimas de carreira, os que não se enternecem com uma criança, os que não sentem o peito rasgar-se perante um velhinho sozinho, os que têm prazer em torturar um bicho, os que preferem cães a gatos, os que não querem que sejas do clube que és, os que embirram com narizes grandes, os avaros que não se compadecem da miséria alheia, os falsos pudicos, os que matam por ordem de outros e os que os mandam matar. Cá estamos de volta à Guerra, não é, caros co-deputados? Ai não, desculpem, a Guerra não, foi apenas uma recaída de parvoíce da minha parte. - Um gole de água.

- Sendo quinta-feira, deixemos em paz os gulosos, mas não nos olvidemos dos que deixam outros morrer de fome, de sede, de abandono, os que ouvem música nos transportes públicos sem auscultadores, os incapazes de sorrir, os de mau fundo e péssimos fígados. Enfim, todos estes que, digo eu para comigo, não merecem o ar que respiram. 

Assim, declaro que votei contra a Pena de Morte por uma questão de povoamento do planeta e manutenção da espécie. Bom almoço. - E sai no seu passo curto, abotoando os três botões do blazer fora de moda que lhe escondem a mais ou menos proeminente pancinha.

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Alguns, poucos e selecionados, de vós, sabereis porque é que o disparate acima se deu por via desta notícia. Raisparta!


segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A Bolha

A Bolha é asséptica. Vista de um ângulo limitado, e sempre repetido,  parece segura, confortável, familiar. Um porto de abrigo, para onde se foge das agruras da realidade. Por isso, nada melhor do que expandir a Bolha, deixá-la envolver-nos a existência toda, limpando o lixo que nos atrapalha, nos contraria, criando dúvida e ansiedade, quantas vezes obrigando-nos a gastar a energia que não sentimos ter, só para concluirmos que afinal existe Outro. O Outro. Esse que, tão diferente de nós, nos conspurca as certezas, nos atiça os medos, nos parte a Bolha. Salvos sejamos.


Eu uso uma, nestes tempos em exclusividade, rede social para fins de recreio. Só que minto. Como todos vós, aliás. Porque as queremos, às redes, para validar a nossa própria linha de pensamento, emitir opinião, vingarmo-nos de uma existência anónima, hiperbolizar - mesmo que sob um manto de modéstia - qualquer fugaz centelha de fama. Fogueira que seja, vá, porque a fama é efémera e contém o seu fim. Como a Vida. Enfim, para sermos finalmente aquilo que acreditamos que eles querem que sejamos. E não somos. Muitas vezes, nem queremos verdadeiramente ser, mas não há remédio.


Olhando assim cinicamente, vejo-os escolherem meticulosamente o seu Real de faz de conta. Estenderem com paciência a membrana da Bolha, limpando cada centímetro quadrado com a atenção de um relojoeiro, sempre com o cuidado de não sobrar alguma fresta, alguma réstia de circulação de ar contaminado, de pensamento diverso, de incómodo da mente. A Bolha é asséptica e a sua moeda corrente é aquilo que eu acredito que é verdade, ainda que não possa ter a certeza. Porque aqui, tudo e todos se validam mutuamente, dado que sou quem os escolhe. A one track mind.


Chega então o momento em que, por qualquer distração, nos enfrenta o Outro. Esse diferente, que - o topete! - pensa de outra forma, caminha por outra via, partilha de diversa tara e sofre de distinta doença. 


Como assim, existe? Se Todos pensam como eu, se tão cuidadosamente nos rodeámos destas paredes transparentes, porque nos havemos de confrontar com o que nos é exterior? Expulsa-se já da Bolha essa ameaça, esse vírus, essa força estranha, seguramente maléfica, alienígena, porque Humana não será, provado que está que todos os Humanos que contam têm a exata mesma opinião que eu. Sei bem disso, porque interajo com eles todos os dias, cada vez mais tempo em cada dia e aplico agora a tudo na Vida o mesmo método cibernético: bloqueio o Diferente e preservo a minha razão. A Bolha expande-se.


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Alegremente protegidos, nunca erramos. Até porque, errando, logo virão os nossos cobolheiros - que lindo nome, pá! - sossegar-nos, assegurar que estivemos bem, deixa lá isso que alguns dizem em contrário, não são dos nossos, ainda que se disfarcem sob a mesma bandeira, são espectros de outras terríveis dimensões, abutres Universais, boçais taberneiros dos confins imundos da Galáxia.  


Olha, meu menino, repara bem que nem sequer aqui estão, na nossa Bolha. Estarás naturalmente certo, pergunta a quem quiseres, anda. Se algum achar o contrário, aponta-mo. Mesmo que seja feio apontar, fá-lo, sem remorso, sem pudor, e ele que se livre de responder. Não temas, nós iremos em teu resgate e bloquearemos qualquer hipótese de comprometimento da Bolha. Que se expande.


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Sou a dizer que vi diferidamente o último jogo do FCP. Estou muito convencido que o treinador se enganou na substituição aos 41 minutos. Não vem daí mal ao Mundo, porque passámos de 1-1 para 4-1, mas, apesar disso, continuo convicto de que foi um erro. Teríamos ganho 4-1 na mesma.


Na verdade, toda essa enorme distância, expressa pelo próprio, entre o que foi primeiro e o que veio a seguir, eu cá não a vi. Entraram mais golos, lá isso entraram, pelo que estou basto alegre. Mas pode ser que tenha ficado claro para mais alguém o lado por onde o adversário criou todo o perigo; da mesma forma que pareceu evidente que o meio campo estava em dificuldade mais pela fraca prestação de quem ficou, do que pelas falhas de quem saiu.


E se no fim tudo correu bem, porque haveríamos agora de perder este nosso tempo? Para que não se repita, apenas? Naaaa, é só porque eu gosto de picar a Bolha. Para que entre ar e não se corra o risco de a consaguinidade dar cabo da espécie.


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Fui a um concerto. Fiquei entre um e maijujamigos que “epá, metal, eu sou metal, ganza e cerveja e encontrões, metal, pois claro, nem conheço música nenhuma destes, mas diz que é metal, \m/, vamolá então, pensei eu, tájabêr?”; e outro que não deu pio durante as três horas de festa, totalmente absorvido na tarefa de ver o espetáculo através do ecrã do seu dispositivo móvel, muito embora tudo se estivesse a passar mesmo diante dos olhos dele.


O primeiro, e a sua trupe, desapareceu por volta do meio da atuação. Atribuo este sucesso a dois encontrões a destempo que o desequilibraram - sempre com um sorriso e um cumprimento fraternal - e, sobretudo, à altíssima qualidade dos meus gases. O segundo...o segundo não foi a lado nenhum. Achará, mais tarde, que aquilo foi esquisito, mais tremido do que supunha, para além de que lhe ficaram a doer os braços. Não admira, três horas de braço ao alto, a pressionar a rodinha vermelha no ecrã, chiça. Já as nódoas negras no antebraço, terão sido das cachaporradas que lhe caíram de cada vez que o cotovelo se aproximou demasiado do primeiro fio de cabelo da gaja bem boa que lá estava com o anormal das barbas. Careca dum cabrão.


Quando saía, contente como um catraio, dei de caras com um tipo que ia de abóbora. Sim, vestido de abóbora. 


Aos primeiros, ao segundo e ao terceiro, fica aqui o meu sincero agradecimento. Obrigado, brodas, por não me terem deixado construir uma Bolha. Não é suposto que a experiência seja essa, para além de que tende a expandir-se. Detesto-vos all the same.


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...when will he breakout of his solitary shell?...

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

La Grande Maladie: De homens e insetos

Eventualmente serão fundamentais para a sobrevivência de várias espécies de pássaros, cujos ovos e carne servem, por sua vez, para garantir que prosperam uma série de mamíferos e ovíparos e outras bichezas e depois vem o homo estupidus e come tudo e caga tudo e queima tudo e assim por diante.

Apesar disso, e talvez por nunca ter desenvolvido convenientemente a tendência ecologista - esqueço-me basto de separar os resíduos e adoro posta mirandesa, quase em sangue - não consigo levar-me a detestar menos a trampa das melgas e dos mosquitos. Está claro que eles me retribuem a preferência, tratando de me sugar o sangue amiúde, sem contemplações. Mesmo que possam escolher entre toda a população chinesa, será seguramente a mim que vão picar, os acabados filhos da puta. E filhas. E eu nem sequer sou chinês!

Em resultado deste conflito de espécies - sugado e sugadores - nutro um carinho muito especial por outros animais. Não que tenha em tempo algum achado boa ideia munir-me de um machado, tatuar um facho no peito, e criar um movimento de caráter militarista. Digamos que procuro antes ter atitudes simpáticas e fofinhas para com animais que, comprovadamente, fazem a vida negra aos chupadores de sangue. Que tradicionalmente sejam espécies pouco queridas, como aracnídeos e batráquios diversos, pouco me importa.

E deixemos, por agora ao menos, de lado o significado de estar a pessoa a demorar-se alguns minutos mais no banho - a água desperdiçada a acelerar o fim do Mundo, a energia desnecessariamente gasta a espezinhar Continentes - à conta destas derivações da mente. Um tolinho todo nu, diríamos.

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É aceitável que seja a intuição de uma certa segurança que leva a aranha a atravessar impávida o teto da casa de banho. Patas negras a contrastar na alvura do teto falso, em movimentos determinados e rápidos, ainda que não em linha reta. Seja como for, mais curva, menos curva, já desde lá do outro lado da assoalhada que era claro que viria nesta direção.

Acontece que pode ser uma viúva negra, ou lá como se chama, daqueles aranhiços de partes incertas do globo, que parecem inofensivos e depois nos matam em menos de um fósforo. Aranha assassina do género Aracnofobia é que não é, uma vez que não guincha. Mas lá que pode aproveitar a calada da noite para me entrar por um ouvido e plantar milhares - ou milhões! - de ovos que me detonarão o cérebro que me resta, lá isso pode.

O facto de se dirigir tão resolutamente a este lado é, ao mesmo tempo, fofinho e um tanto assustador. Caramba, afinal há aqui movimento e vapor e coisas, o que deveria - sei lá, digo eu - fazer com que um animal desta dimensão, francamente mais pequeno do que a besta que coze debaixo do chuveiro, sentisse disparar os sensores de perigo. Tão mal contada que está, essa história do Homem Aranha.

Enfim, impõem-se decisões.  É provável que o mais seguro seja espetar-lhe com uma esguichada de água assim que esteja ao alcance. Cairá na base do chuveiro e bastará empurrá-la para o ralo. Adeusinho ovos comedores de miolos e picadas assassinas.

Por outro lado, um só mosquito que caísse na sua teia e passasse a almoço, representaria uma vitória retumbante da clemência, da tolerância, quiçá a alvorada de um modo de vida outro, simbiótico, de harmonia entre Homem e Aranha. Que grandes feitos daqui adviriam, caro Stan?

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O inseto parece hesitar, precisamente sobre a cabeça pelada do humano. Depois prossegue resoluto, em direção ao canto do teto. Aninha-se, encolhe-se, predispõe-se a esperar que todo o movimento cesse. Então, será uma bela altura para começar a fiar uma teia, construir um lar, caçar o almoço.

Perfeitamente sossegada no vértice, é apenas um ponto escuro, invisível. Ele sai do banho, seca-se, é possível que se vista e vá tratar da sua vida.

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- Vem cá, pá, depressa. Não podes perder isto. - Impaciente, ansioso, excitado, um catraio prestes a explodir uma bombinha de carnaval.

- O quê, Senhor? Que se passa?

- Ah, perdi a paciência, por fim! É tudo demasiado estupido, vou exterminá-los de vez. Não foi uma decisão fácil, que a Divindade se afeiçoa aos bichos e depois custa um pedaço, mas é pelo melhor. Puf - faz “puf” com as mãos - bye bye parvalhões dos polegares oponíveis.

- Eish, vai explodi-los, Senhor? Afogá-los? Não, isso não, que aparece sempre um Noé da vida que estraga tudo. Já sei! - bate as palmas - Matam-se os primogénitos todos, até que não restem senão primogénitos, que serão, consequentemente, mortos eles também. Que bela batota, Senhor!

- La Grande Maladie! - Anuncia.

- Hã?

- É francês, oh pescador. És mesmo rústico.

- Porquê francês, Senhor? - Perplexo.

- Sei lá, apeteceu-me. Soa sofisticado e, ao mesmo tempo, tem aquele tom creepy. Não achas? Oh escuta lá: La Grande Maladie! - Com voz grave e dramática, abrindo os braços.

- Pois, talvez... E é o quê, isso? 

- Anda cá. - Passa-lhe um braço pelos ombros e aproxima-o da Grande Janela. - Tájavêr ali o debilóide a tomar banho? Agora repara no teto. Aquela pequena aranha vai pôr-se mesmo a jeito e o anormalóide vai mandar-lhe uma chuveirada que a fode.

- Senhor! - Chocado.

- Oh, tu percebeste! Ora, quando o bicharoco cair na banheira, vai desprender-se dele um vírus fatal que, por sua vez, vai meter-se no estupido... - Interrompido.

- Meter-se? Como assim meter-se?

- Olha, pelo cu acima! Se é para me vingar destes milénios de disparate, ao menos gozo o prato todo. Mas isso agora é de somenos, o que importa é que é este vírus que vai espalhar-se e exterminar a espécie. Xaram! - Abre os braços.

- Bem, está um bocadinho visto isso, não?

- Pois claro que está, Pedro. É essa a ironia. Ainda por cima a começar com o parvo. É Divina!

- Errrr, Senhor... - Chama-Lhe a atenção. - Parece que a besta está a ir-se embora. Já estará infetado? Eish, e vai nu, ca noijo...

- Hã?

...




quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Quebra-se o encanto



Quando as nuvens ainda se espreguiçam pela estrada, as lâmpadas de iluminação pública pairam uns metros acima da cabeça, emitindo uma luz baça pelo meio do nevoeiro, os faróis que se cruzam parecem cumprimentar-se efusivos - ena, por aqui também a estas desoras? Vens ou vais, chegas ou sais? - e a voz do Senhor Kilmister soa doce como o décimo primeiro shot de tequilla, esse que te traz a clarividência de todas as coisas do Universo e, por isso, te leva as forças das pernas e te tomba, derrotado, amassado pela Verdade de seres incapaz de mudar o Mundo e assim cais, enquanto os outros te rodeiam em gargalhadas entarameladas, ignorantes, oh pobres!, da imensa dor da nossa insignificância: sixteen years old when i went to the war.

Dizia, quando são quatro e meia e estás a levantar-te da cama onde queres dormir, sabes que o dia será longo. E que às seis da tarde, tudo terá o aspeto gasto das segundas-feiras às dez da noite.

Por isso, não se pode dizer que deixar cair a carcaça no comboio das dezoito, apenas doze horas depois de teres percorrido os mesmos carris, só que no sentido mau, seja uma má recompensa. Até porque há toda uma ciência da escolha de lugares que pudeste desenvolver em anos de tentativa e erro: isolado de preferência, o mais perto possível do isolado, quase sempre. A lógica é tão simples que faz impressão: se não podes ir sozinho, pelo menos elimina uma possibilidade - um individuo - de te apoquentarem os nervos, dada a ausência de parceiro do passageiro que viaja refastelado e isolado.

Eu sei de cor onde ficam os lugares, portanto nem olho para o número quando peço licença ao senhor abancado do lado do corredor, para que possa morrer por duas horas no assento do lado da janela. Ele levanta-se, com certeza, e noto que emparelha com o casal nos dois lugares da outra margem do corredor. Este espírito alcoviteiro, que reputo de interesse sociológico para me enganar, prende-me imediatamente ao trio. Eles acima dos 65, ou mesmo a rasparem-lhe, ela um cisquinho mais nova. Um pouco mais adiante - mas fica já dito, não vá esquecer-me - virei a saber que partilham o mesmo nome próprio ambos os rapazes. Um de pólo verde, Lacoste, outro de pólo azul, Boss. Ela tem dois óculos escuros dependurados da rede nas costas do banco da frente e

                                       (Ray Bon, no quiosque do monhé, em frente da Sagrada Família, quarenta graus, nós de turistas, os teus pés ainda fresquinhos de não terem percorrido toda a Rambla de salto alto. Se sairmos nesta podemos fazer La Rambla inteira. Que tal, Amor? E tu ingénua que sim, que pode ser, sem saberes que eu nunca a tinha caminhado completa, não sóbrio pelo menos, não fazia ideia da distância. A única coisa que sim, sabias, é que não sei que seja andar em cima de saltos. Depois o arroz negro do Caracoles, bastante menos interessante do que o Caracoles em si, as mãos dadas de sermos namorados outra vez, o quarto à espera, Barceloneta amanhã, quero cá saber que seja mesmo de turista, enchem-me a Alma e o filhadaputa do bar que te quero mostrar não aparece. Sabes, metade, é em Madrid, acabo de me lembrar. Estamos, aqui ou onde for, e damos as mãos e os meus óculos são Ray Bon e o monhé riu-se connosco da marca e cobrou apenas cinco exagerados euros, ou terão sido dez, e sim, somos sempre felizes calcorreantes sem vontade de voltar. Um.)

                                                          uma mala branca, de mão, pousada na mesa retrátil. Não tenho como ter a certeza, mas está decidido que o verde é Lacroste e o azul é Hugo Doss, certificado de garantia da Feira de Espinho ou do Mercado de Ovar. Proeminentes nos seus pólos de marca, valentes panças arredondadas. Ela menos exuberante de abdominal, mas provavelmente de igual calibragem se fosse possível derreter-lhes as gorduras para recipientes medidores.

O Lacroste é o marido. Sei-o porque o trata um pouco pior e lhe arremessa a mãe e a irmã, as dele, à penugem grisalha do rosto, à conta de não saber dobrar o casaco que ela quer que ponha na prateleira acima dos bancos. O Doss é que trata da situação, embora, igualmente baixote, nenhum deles se ajeite a chegar ao lugar altaneiro onde é suposto repousar a veste. Quem são estes meus companheiros de viagem?

É-me inevitável, não consigo escapar a isto. A mais que tudo está sempre a dizer-me, em cafés e restaurantes, para eu não me sentar, de olhos e ouvidos, na mesa de desconhecidos. Mas eu quero saber do que conversam, que histórias têm para contar, raisparta, de que clube são. Não quero sequer que falem comigo, quero só assistir à sua conversa, partir dela para inferir a sua história, teorizar a relação, perspetivar o que acontecerá a seguir. Se isto não é um voyeur, não sei o que seja, Mr. Chance.

Corrijo, O que são Lacroste, Doss e Ela?

...

Doss é irmão dela! Ou terei adormecido entre tentar ouvi-los e fazer uma piada idiota a alguém remoto. É o irmão encalhado, preguiçoso, que saltou de trabalho em trabalho, que nenhuma mulher aturou por muito tempo. Definitivamente, não é o irmão padreco, introvertido, abusado, que ficou até ao fim a cuidar da mãe e a masturbar-se às escondidas, usando as cuecas da irmã. Demasiado extrovertido para isso, está claro. Portanto, resta-nos a primeira hipótese.

Ela, evidentemente, tem uma relação maternal com ele, daí apaparicá-lo enquanto procede a desancar o outro. Apesar de mais nova, foi Ela quem aprendeu a cuidar do irmão, a fazer-lhe a comida e tratar-lhe da roupa, enquanto a mãe dava horas a dias para que ele pudesse estudar. Do pai não sabemos nada. Talvez o álcool, talvez as mulheres, talvez o jogo. Quem sabe são bastardos de um senhor importante e endinheirado. Irmãos, claramente. 

Ela cuidou da mãe quando o corpo lhe morreu, anos antes do cérebro e do coração; cuidou dele desde de que se lembra; e arranjou maneira de cuidar de mais um - e filhos? haverá filhos e sobrinhos? - não fosse a vizinhança pensar que era menos mulher do que as outras. Apesar dos passeios a Lisboa e da língua despachada, é isso que Ela faz: cuida.

Que Lacroste pareça tolerá-lo tão bem é que é estranho. Vai-se a ver, os anos derrotaram-lhe as irritações e decidiu, secretamente, não se aborrecer mais. Por outro lado, à medida que envelheceu, foi-lhe dando cada vez mais jeito um parceiro de copo e sueca, de duas de treta e olhar cúmplice para as mamas das cachopas. Ou torcem pelo mesmo clube ou não ligam nenhuma à bola, isso é certo. Já não são cão e gato, como antes, mas dois amigalhaços que partilham o amor de uma só mulher que o divide em fatias generosas

                                           - ATÃO, ESTAIS A PREPARAR A CALDEIRADA? JÁ SÃO HORAS, EHEHEH. - Grita Doss a poucos centímetros de mim, acordando-me em sobressalto. Está a olhar para o ecrã do seu telefone, no qual decorre uma video chamada, para as fuças de outro qualquer, congeladas na rede instável do Alfa Pendular. Olho para as horas, ainda não se vê Coimbra nos ponteiros.

...

                                                       que depois oferece a um e a outro, consoante a ocasião. Sim, são um trio. Um casal e o seu amigo de anos e anos. "Amigo", assim é que é. 

Que tem? Lacroste agradece a ajuda que lhe tirou, desde cedo, uma série de preocupações tipicamente masculinas de cima. Isto a dois, não há tarefa que não se faça. Ela não tem dúvidas de onde está a sua lealdade e, mesmo que com o tempo acabasse por dividir o coração, é sempre com Lacroste que dorme. O que não impede, hoje ainda, uma ou outra visita ao quartinho de hóspedes. Ou os serões a três, sem televisão, na sala, quando a Ela lhe apetece e a eles não sobrevém nenhuma maleita impeditiva. Se até os vizinhos se habituaram, havia de ser um tão temporário companheiro de carruagem a ter opinião? 

Que tem, como em relação a tudo, raios o partam, mas não importa nada para o caso.

Doss acabou por se resignar a não ter mulher que chamasse de sua. Mas também, tanto tempo investido nestes dois, mais o trabalho e um anexo minúsculo na periferia, como lhe sobraria dia para a corte, o galanteio, uma ida ao cinema à tarde, à danceteria à noite? Não que o não tenha feito, que fez. Mas com Ela, durante um tempo às escondidas, durante o resto com o parceiro do outro lado do corredor deste comboio, sentado do outro lado dela, cada um a segurar-lhe numa mão, enquanto pela cabeça lhes passa

           - BEM, NEM SABES O QUE ME ACONTECEU, MULHER! - Grita Ela para toda a carruagem, telefone colado ao ouvido. Estremunhado, afino o tímpano, porque Ela baixa o tom. É agora que se vai, de alguma maneira, confirmar o que aqui se passa, nesta coincidência de barrigas e pólos de marca coloridos. Sem pôr a mão à frente da boca, como agora fazem os jogadores de futebol, prossegue dois piquinhos de volume abaixo:

- Estive a tomar antibiótico estes dias, por causa de um ouvido, vê lá tu. Deu-me uma diarreia... que maçada. Quando uma pessoa está em casa, ainda vá... - E eu procedi a discutir a etimologia da punheta numa rede social, com pessoal especializado. Bem feito, para não andar a sonhar com a vida dos outros.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A Mesa do Canto: O seu a seu dono, contra a discriminação (com O Fafe do AB6)





Um gajo quando é apanhado tem sempre múltiplas hipóteses de lidar com a situação. Pode sempre optar pelo mui batido "epááááá, 'tava a brincar, era uma piada, atão não se via logo, parece que não me conheces"; simular um ataque cardíaco e deixar quem o desmascarou cheio de remorsos, ainda por cima; e mais uma infinita miríade de possibilidades que seria fastidioso aqui enumerar, pelo que saltemos já para a minha favorita que é "Eu não tenho a culpa!" Hã?

Claro que depois há os tipos geniais. Por exemplo, o xôr Louis CK que à conta de ser tantas vezes apanhado a puxar lustro ao golfinho, achou melhor transformar isso numa série de piadas antológicas e ser um dos melhores comediantes do seu tempo.

Isto a propósito de me ter posto aqui há atrasado a louvar o camurso do Évora - fulano de quem tenho um centímetro bem medido de inveja, no máximo!! - pela sua vitória no Campeonato da Europa. Pumbas, nem bem tinha acabado de dizer a boçalidade, já a um até então pacato freguês desta casa de pasto lhe saltava a tampa. Com toda a razão, diga-se.

Agarrado assim desprevenido, com as calças na mão como o bom do Louis, não tive sequer presença de espírito para um "aaaahhhhh, não, não era bem isso que eu estava a dizer, era mais uma graçola, vá, aiiii que parece que sinto uma picada aqui no peito que estou a ficar todo apanhadinho duma perna, para além de que não tenho culpa nenhuma." Nada, nem piei. Limitei-me a sentir as bochechas a ficarem muito vermelhuscas, a baixar os olhos e a pensar ora fuoda-se, que ganda calinada, credo! 

Como não há ninguém melhor do que quem sabe para corrigir um erro, hoje senta-se na Mesa do Canto, com direito a garrafa especial e tudo, o O Fafe do AB6, que fez o favor de aceitar o meu pedido para esclarecer quem é O Melhor Atleta da História de Portugal. Até hoje, uma vez que eu ainda não decidi se enveredo ou não pelo desporto profissional. Depois aviso.

...  

É inacreditável e indesculpável como o País político, o País mediático e o FC Porto nunca reconheceram, devidamente – com a justiça e mérito inatacáveis – o invejável e inigualável currículo desportivo de FERNANDA RIBEIRO, que é, sem sombra de dúvida, o maior “monstro” do desporto português e que não tem qualquer paralelo na história lusitana.

Ela é O maior atleta português de todos os tempos e de todos os desportos.

Porquê, a ela, nunca foi dada a devida fama nem atribuído o devido proveito?

É a rosinha da foz, “menina do regime” e ”menina do polvo vermelho” – não porque tenha sido – ou não – sua atleta, mas porque a este sempre interessa diminuir e rebaixar tudo o que possa engrandecer o nome do FC Porto – que goza da fama e do proveito, convidada para todas as cerimónias desportivas e público-políticas e cantada como referência da juventude, com direito a substituir, com seu nome, o quase septuagenário Palácio Cristal.

Não interessa saber se a “ rosinha, menina do regime” é portista pelo coração, ou não. É um “carisma” pré-fabricado, levado pela “onda” do regime e usurpado pelos nossos raivosos detractores, que não suportam a aura vitoriosa da família “azul-e-branca”.

São assim, no meu país, as mordomias e os “altares públicos” para os “meninos do regime” e para os anti FC Porto. O “polvo vermelho” é muito mais do que abrangente, é o poder absoluto corruptor – se moral ou material, compete às respectivas instâncias determinar – em todas as áreas desportivas e políticas.

A “menina do regime” nunca passou de uma mediana atleta de pista, quase sempre superiorizada pela nossa Aurora Cunha, nas provas de 10000, 5000, 10 kms Estrada e Corta-mato.

A “rosinha, menina do regime” apenas foi grande na Maratona, quando a Maratona ainda não era uma prova para especialistas, mas apenas para os reformados da pista.

Para quem tem memória curta ou “fingido alzheimer” – com muito respeito pelos verdadeiros doentes – a seguir relembro o palmarés da enormíssima Fernanda Ribeiro. Leiam e interpretem com atenção, pois, até, muitos portistas há que não têm em devida conta a magnificência do seu sucesso global:

MEDALHAS de OURO

Jogos Olímpicos 1996 (10000 mts) - Atlanta
Campeonato do Mundo 1995 (10000 mts) - Gotemburgo
Campeonato da Europa 1994 (10000 mts) - Helsínquia
Europeus de Pista Coberta 1994 (3000 mts) - Paris
Europeus de Pista Coberta 1996 (3000 mts) - Estocolmo
Europeus de Juniores 1987 (3000 mts) - Birmingham
Campeonatos Ibero-americanos 2000 (5000 mts) - Rio de Janeiro
Campeonatos Ibero-americanos 2004 (5000 mts) - Huelva

RECORDE OLÍMPICO

1996 - 10000 mts em 31:01.63 - Atlanta

MEDALHAS de PRATA

Campeonato do Mundo 1995 (5000 mts) - Gotemburgo
Campeonato do Mundo 1997 (10000 mts) - Atenas
Campeonato da Europa 1998 (10000 mts) - Budapeste
Europeus de Pista Coberta 1998 (3000 mts) - Valência
Mundiais de Juniores 1988 (3000 mts) - Sudbury

MEDALHAS de BRONZE

Jogos Olímpicos 2000 (10000 mts) - Sydney
Campeonato do Mundo 1997 (5000 mts) - Atenas
Europeus de Pista Coberta 1997 (3000 mts) - Paris
Campeonatos Ibero-americanos 1990 -) 3000 metros - Manaus

CAMPEONATOS de PORTUGAL

5 x Campeã Nacional 1500 mts (1989, 1990, 1995, 1998, 1999)
4 x Campeã Nacional 5000 mts (2000, 2002, 2004)
3 x Campeã Nacional 10000 mts (1992, 1996, 2008)
Campeã Nacional Maratona (2009)
Campeã Nacional Corta-mato (2003)

Note-se que nos Mundiais de Gotemburgo, em 1995, conquistou as medalhas de Prata e Ouro, nos 5000 e 10000 mts, respectivamente e que, nos Mundiais de Atenas,em 1997, conquistou as medalhas de Bronze e Prata, nos 5000 e 10000 mts, respectivamente.

Fernanda Ribeiro foi medalhada com Ouro, Prata e Bronze, em Jogos Olímpicos, Mundiais, Europeus e Europeus de Pinta Coberta, em 3 disciplinas diferentes: 10000, 5000 e 3000 metros.

O MAIOR ATLETA PORTUGUÊS de TODOS os TEMPOS e de TODAS AS MODALIDADES.

O seu invejável e inigualável currículo desportivo nunca deveria permitir que a “rosinha, menina do regime” e outros “meninos do regime, que tais”, lhe usurpassem o mais alto “trono público” e os correspondentes proveitos, que são seus por direito e por grande mérito.

Enquanto atleta da universalidade lusitana, sem dúvida que Fernanda Ribeiro deveria ser sempre a embaixatriz oficial em toda e qualquer cerimónia desportiva e em qualquer cerimónia público-política-desportiva – ela é o maior ícone da vitória, em representação da esfera-armilar e das quinas.

Enquanto portista e expoente máximo em representação do emblema azul-e-branco, merece uma festa azul-e-branca universal e, não uma estátua, não uma estrela no passeio da fama, mas um grande mural em azulejo, junto ao símbolo do Dragão, no nosso estádio, com a Fernanda Ribeiro a cortar a meta em Atlanta, ladeado por placas em latão com a totalidade do seu currículo desportivo.


Por O Fafe do AB6 | @O_Fafe_do_AB6
Este Fafe opta por escrever na ortografia antiga,. Fafeiro!

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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Embandeirar em arco

Conta-se em duas penadas a sabe-se lá se triste história de Cláudio R. da Silva:

Nascido devidamente equipado em tamanho para o amor, desde tenra idade espantava pela  impecável aerodinâmica e muito apreciável estética peniana. Enfim, o que se convencionou chamar de bela pila.

Mais até. Cláudio revelou desde os primeiros ensaios uma inata aptidão para a cópula. Não que isso o surpreendesse, dada a arrasadora onda de sublimes sensações que o tomavam quando, petiz, praticava o ato de si para consigo. Espancava o macaco, portanto.

De família, carregava os genes da simplicidade e da humildade, a esmerada educação dos modestos e a certeza de que, desconfiando de si mesmo, poderia manter sempre os pés bem assentes no chão. Daí que sempre que um amigalhaço de ocasião lhe dizia: Oh Clau, a minha prima bem boa diz que lhe disseram de ouvir dizer que era melhor ligares-lhe enquanto os meus tios estão embarcadiços, num cruzeiro demorado; o bom do rapaz respondia: Pá, não é tanto assim, tenho muito que melhorar e há aí malta muito competente e bem preparada e que investiu em operações e faz ginásio e essas coisas todas. Não vamos agora embandeirar em arco.

De tão pouco embandeirar, tanto se convenceu do que pregava, que nunca mais deu uma em condições. Ainda hoje, cerca de 85% da freguesia feminina da Tasca vive a repetir: Credo, que desperdício ter ido para panasca.

O que é prontamente rebatido por uns 32% da freguesia masculina.

Com pedaços de bolinho de bacalhau a lutarem pela vida nos cantos da boca, o Berto Faz Tudo dá sinal de vida:

- Eu cá embandeiro um pedachinho para a exquerda. E tu Xilva?

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Ora então começou o Campeonato. E abriu da forma mais natural: Cincazero, Silva. Como era de esperar, meio Mundo desvaloriza, à conta de um adversário supostamente morto; e outro meio já desatou a berrar que não devemos embandeirar em arco. Lá está.

De acordo amigos, a soberba, como a gula, para além de pecado, pode fazer mal ao intestino e, de repente, está a pessoa com uma caganeira do caraças. Mas não precisamos de fazer de conta. É que não sendo um dos sete, a hipocrisia é o grande pecado do Homem. E fazer maki com morango e compota de framboesa também!

Deu-se o caso de ver os jogos dos supostos adversários. Não é que possamos encomendar as faixas, mas devemos ter a honestidade de reconhecer que partimos à frente. Um pedaço. Grande. O mais próximo será o S.L.Braga.

Percebe-se. Estamos em modo continuidade, afinando o modelo, suprimindo defeitos, enfim, aperfeiçoando e não construindo. Essa é uma vantagem e o melhor é que, pela amostra, não estamos nada inclinados a prescindir dela. Eu espero um FCP bem melhor do que o anterior e o treinador também. É isso não tem porra nenhuma que ver com jogadores novos. Anyway, se alguém tiver por aí esquecido um lateral esquerdo dentro do prazo...

Pronto, não embandeiremos em arco, para não ferir o politicamente correto. Mas pelamordeDeus, não me comecem já com as finais, a Vida e a Morte, o fim do Mundo sem Suecas desnudas. Ninfomaníacas. Porque haveremos de dar gás ao colinho mediático que vai tentar disfarçar vitórias sofridas, fabricar soberbos craques que encherão de esperança os rubrósverdeados corações e estupendas exibições durante 10 minutos?

Foda-se, somos melhores, estamos melhor, mais fortes, mais rápidos, mais alto. Fodemos melhor, pronto. Porque é que haveríamos de esconder isso das moças? Ganhar vantagem ao primeiro olhar é uma bela estratégia.

Isto é embandeirar em arco? Well, eu é um pedacinho para a esquerda também.

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O desproporcional do Nélson Évora ganhou o Campeonato da Europa. Já antes tinha sido Campeão Olímpico e Mundial. Eu não sei se alguém já tinha feito isto antes, já? Mesmo que sim, mas desconfio que não, é seguramente um dos maiores, senão o maior, feito do desporto nacional! Que golos do Cristiano em jogos treino contra equipas B mereçam mais destaque, não diz apenas da me(r)dia que temos, diz também do Povo que somos. Que não somos, digo. Mas podíamos ser.

Só não percebo como o gajo consegue. Eu próprio ando hácanos com um par de meias, daquelas de futebol, metido nos boxers e não há meio de saltar nada que se veja, fuoda-se!

Acho que o truque do moço é usar um calçonete de licra muntapertado, mais parece que vai fazer Ponte Nova - Furadouro ao Domingo, à rasca para ser atropelado por um BMW de aluguer com matrícula Suíça. Aquilo revela ao enfado - bota enfado nisso, filhadaputa - a meiucha metida nos truces e pumbas, até parece o gajo que voa.

Ora nem mais, o que o Évora faz é não esconder o arco. Ou a bandeira. Embandeira em arco, lá está. Aposto que é um pedacinho para a esquerda. Quer dizer, tendo em conta a proporção, um bom bocado, vá. Damn!

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Alarcón, FCP! É isto, a propósito de malta que anda por aí em licra a mostrar com quantos mastros se faz um embandeiranço. Empandeiranço. Coiso.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

O Corpo de Deus

- Valha-me Eu Mesmo, que desperdício de
Livre Arbítrio, credo. - Abana a Grande Cabeça, um tanto incrédulo, um tanto desiludido. - Sinto uma ânsia cada dia maior de corrigir este pequeno erro. 

- Passou ainda muito pouco tempo, Senhor. Somos uma espécie muito jovem, é natural que sejamos parvos. - Tenta amenizar, o factor corporativo a falar mais alto.

- Talvez, talvez. Não deixo de sentir que correria melhor se tenho apostado nas centopeias. - Cofia as barbas. 

- Argh, Senhor, tão feias, cheias de patas. Olhe a experiência em Znodar... - Arrisca.

- Que tem? Já viste as gavetas das meias e cuecas dos Znodarianos? Im-pe-cá-beis, pá!

- Vai-se a ver é porque não há assim muitos Znodarianos... - Entre dentes.

- Kié? Outra vez isso de ficarem sem a cabeça à primeira queca? Um detalhe, Pedro, um detalhe. Para além de que Louva-a-Deus é um nome muito feliz para uma espécie. Eu acho. E olha, não sei, mas cá pra mim, os teus amiguinhos lá de baixo não andam longe de pensar que isso é boa ideia. Equidade a sério é ser a fêmea montada à canzana, para nem ter que ver o macho, e quando estiver assegurada a continuidade da espécie, zás, arranca-se-lhe a cabeça à dentada. Aposto que ainda aprovavam uns subsídios para isto. - Esboça um sorriso.

- É a juventude, Senhor, verá. E talvez pudéssemos usar outros termos. - Olha em volta, preocupado. - Não é lá muito boa altura para dizer macho e fêmea, é um bocado confuso. Coisas de jovens, já se vê.

- Mas foda-se, oh Pedro, em tão pouco milénio já fizeram merda de caraças, não? Não há paciência. E depois é esta soberba que não se entende. Consideram-se tanto e tão e tudo, que lhes parece sempre adequado perderem tempo com as merdas mais inimagináveis. Vou é acabar com as subtilezas. Ai agora um maluco no poder a ver se entendem, ai agora umas catástrofes naturais a ver se acordam, e nada. Nadica! Uma praga é que vai ser. Manda-se os de Znodar invadir aquela trampa e comer-lhes as cabeças a todos. A eles e a elas e aos entretantos, a ver se não acham logo estupendo serem os géneros diferentes.

- É isso que o irrita, Senhor? A sério? - Indignado. - A fome, a guerra, as criancinhas, a Maria Leal a cantar, enfim, toda uma cornucópia de desgraças a pedirem a atenção Divina e é com isso que se preocupa? 

- Pois claro! Eu tenho um Universo para manter em equilíbrio. Lá tenho tempo para pormenores? Agora, o género é um factor crítico da Criação. E o Criador sou Eu!

- É um pedacinho culpa Sua, havemos de convir. - A muito medo. - Com essa coisa de “à imagem e semelhança” e da Santíssima Trindade, que é 3 em 1, melhor que o champô das estrelas de cinema. É sempre Ele, o Senhor? Se sim, como é que Ela é “à imagem e semelhança”? E a mulher do Zé? Pelos vistos a Mãe não era da Trindade. Não parece lá muito equitativo em termos de género, não...

- Muito engraçadinho, o senhor Pedro. É pena o cancro terminal que o manda da Vida Eterna para melhor, não é?

- Hã? Isso pode-se? - Em pânico.

- Pergunta parva, hein? Mas não tenhas medo, com a dificuldade em arranjar criadagem em condições nesta Eternidade, desculpo-te mais esta, oh pescador. Pá, à imagem e semelhança é uma metáfora. Também é sabido que Sou todas as coisas e não vês malta a defender o direito de se sentir uma bolota, apesar de ter sido batizado Maria, pois não? E não me apetece agora falar disso do Espírito Santo ser Pai de Si Próprio. Foram tempos complicados... - Pensativo. - Caramba, não me rala que se engalfinhem por qualquer disparate e que se ponham a discutir pintelhos até à exaustão, mas pilas são pilas e con... - Interrompido:

- Senhor!! - De olhos muito abertos.

- Ora Pedro, queres que lhe chame o quê? Senaita? Rata? Pipi? Isso é que são lindas palavras, é? Opá, fartinho até aos colh... - Interrompido:

- Senhor!!

- Enfim, como se fazer a luta pela igualdade fosse igual a abolir toda a diferença. Como se o primado da tolerância pudesse ter raiz na intolerância ao contraditório. Cansado, eu estou.

- Pois, está claro que eu sou um mero Santo, não posso compreender o Grande Plano Cósmico na sua infinita totalidade, mas ainda assim, que não sei, pensei que o preocupava mais a Eutanásia do que quem é que é contra rapar as sovaqueiras e outras pilosidades quejandas.

- Qual Tânia? Não conheço nenhuma Tânia, era concerteza alguém muito parecido comigo. Nunca lá estive. 

- Não, Senhor, não é Tânia nenhuma. É aquela coisa do suicídio assistido, da morte programada.

- Naturalmente, Pedro. É sempre programada. É nascer que já se fica logo com ela agendada, qual é a questão?

- Ora, Senhor, o direito sobre a Vida e a Morte é só Seu, não podem agora os vivos, ou os mortos, para o que importa, virem decidir se... - Detém-se perante a grande manápula levantada.

- Quero lá saber! Morrerão, assim tenham nascido. É esse o Meu Desígnio, nada mais.

- Mas...mas... a Doutrina... é sabido que é Pecado Mortal porem-se as pessoas...

- Poupa-me pá, não me metas nessas picuinhices. Aiai que isso é Eu que mando e ninguém mais mete a pata, vai já tudo para o Inferno, sem passar pelo Purgatório e receber dois contos, se não for Eu a mandar. Vais quinar anyway, mas só quando eu disser, pumbas bem feito. Soa um pedacinho a falta de confiança, não? Parece a Divindade que tem que ser um ditadorzeco no trabalho, para compensar a porrada que leva em casa e isso tudo. Eu Sou. Ponto. É quanto basta. E estou muito abatido de vos aturar, mais aos vossos disparates. - Deixa cair a cabeça entre as mãos.

- Pronto, pronto. - Passa-Lhe um braço pelas costas. - Também precisa de se distrair um bocado. Olhe, aproveitemos o feriado e vamos fazer qualquer coisa diferente. Sei lá, criar uma nova espécie ou assim.

- Feriado? É feriado de quê?

- Corpo de Deus, Senhor.

- Hã? Mas se Sou incorpóreo! Como assim o Meu Corpo? Era o que faltava! Ainda me meto numa série de chatices por ter as pernas depiladas à conta de andar de bicicleta ou assim. Nem pensar, quais Corpo de Mim quais carapuça!

- É o que diz aqui, Senhor, eu não tenho a culpa.

- Gafanhotos. São amorosos, os gafanhotos, mais aos seus saltinhos. Upa, upa, poing, poing. - Salta á roda do outro. - Não achas, Pedro?

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quarta-feira, 4 de abril de 2018

Do Golfo e de outra derrota



Eu acho que alguém me devia pagar para criar um blogue de viagens. Sou o tipo ideal, acreditem, desde que me mandem em lazer. Pá, nem me importo de ver os e-mails de trabalho duas vezes ao dia, pronto.

A questão é que parece que perco todo o sentido crítico. Adoro tudo. A comida pode não ser espetacular, mas a novidade dos sabores compensa-me plenamente. O tempo pode não estar lá essas coisas, mas hey, a maravilha que é lá estar no off season, a experimentar tudo o que os magotes de gente ao Sol vão esconder. É certo que o alojamento parece uma pensão manhosa na Brandoa, mas não há nada que chegue a este viver o sítio real, como se fosse indígena. Enfim, eu gosto mesmo é de laurear a pevide, de andar no laru, de alçar o rabo de casa e pôr-me na alheta. Se me quiserem pagar por isso - aliás, pagar isso, ponto! - é garantido que vou escrever maravilhas do local. No mínimo, de alguma coisa no local e de certeza que vou clicar na opção “voltarei”.

Depois há o “outro lado do Mundo”. Ainda que um pouco desviado na Geografia e no tom do castanho das gentes, alegro-me no cheiro das especiarias e na cor do Oceano. Aqui é Mar, mas acreditem que a água sabe ao mesmo. A localização permite-me cumprir a quota mínima de headshakers para que a minha Alma Indica se sinta igualmente em casa. Quero dizer, num upgrade de casa, como se o primeiro Mundo, de repente, tivesse invadido Hikkadwa.

A pessoa olha para a fotografia e pensa no Caribe, no Pacífico talvez, pode até condescender no Índico Maldiviano, em ilhas das Seychelles enfim. O Golfo são guerras e petróleo e explosões e mulheres de burca, no mínimo de hijab, e areia a perder de vista. Ou então imitações caras de grandes metrópoles, com espírito de Las Vegas, sumptuosos recreios infantis para os verdadeiramente ricos. Consigo ainda cheirar isso daqui, estereótipo à parte, mas a estrada foi marcando as diferenças, apesar dos poucos quilómetros e da mesma bandeira.

Voltarei, sempre que puder, mesmo que não me tenham pago. Mas deviam. Fiquem com o nome e mantenham o espírito Tuga alerta: de vez em quando aparecem promoções imperdíveis em RAS AL KHAIMAH.

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Eu acho que alguém me devia ter feito jogador de futebol. Seria um daqueles que todos os treinadores gostam de ter. O repositório de mística do balneário, o capitão - com ou sem braçadeira - que grita com os companheiros e os mete na ordem, a voz do treinador em campo, o exemplo de raça, de querer e de crer, o homem do nervo, do sacrifício e da superação. O orgulho no emblema estampado no rosto de cada vez que entrasse em campo, os olhos cheios de água ao ouvir o clamor do estádio a culminar o hino: Porto, Porto, Poooooorto! Huuuuaaaaaa!

Tenho tudo, ainda agora, na calvície grisalha. Só me falta saber jogar à bola. Get it mister?

Nem por isso? Então pegue lá meia horinha de explicações. À borla. E vamos a isto que este caneco não nos vai escapar!

quarta-feira, 21 de março de 2018

Do Amor e da Derrota


Escuta, uma noite destas separámo-nos. Não te sei dizer se de papel passado e tudo, mas deixámos de nos conceder esta prerrogativa da vida em comum. Como se algum dia a nossa vida tivesse sido comum. O mais estranho é que passámos todo o tempo da negociação que isto sempre envolve numa espécie de limbo. Posso garantir-te que eu e tu olhámos para o tempo a passar, para os requerimentos a decorrerem os seus prazos e, muito provavelmente, para o ar de espanto e secreta revanche mesquinha de muitos dos que terão, eventualmente, falado connosco acerca, como se tudo fosse apenas provisório. Como se soubéssemos de fonte muito segura que no fim não haveria desenlace, não este.

Víamos os acontecimentos como se estivessem dentro da vida de outros, a acontecerem-nos perante os olhos, sem que os parássemos porque aquilo não ia passar-se. Como não ia, nenhum de nós precisou de sair da sua fortaleza de razão, de dar um pequenino passinho na direção do outro que nos teria posto a correr aos dois. Para quê? Era tão evidente que este nó no estômago desapareceria de súbito, tão estupidamente claro que nunca - mas nunca, percebes? - iríamos deixar que um dia alguém chegasse a uma folha deserta e escrevesse: Escuta, uma noite destas separámo-nos.

É pois sem perceber bem como, que me vi sentado a uma mesa redonda, branca, de cadeiras brancas, tudo a fazer lembrar aquele mobiliário lacado de antigamente, de lado para ti, como é costume sentarmo-nos em mesas redondas só os dois, de forma a que não fiquemos muito longe, fora do alcance da mão. Mas super-design, está claro. Ou não, não tenho a certeza. Só sei que ninguém, em nenhuma esfera do saber ou sentir, alguma vez achou de mau gosto as tuas mesas e as tuas cadeiras. Sim, porque eram tuas, na tua casa. Assim, tua. Não nossa. Eu continuava com o estômago às voltas e a pensar: Mas quando raio é que acaba o disparate e volta tudo ao normal?

Sei hoje que tu pensavas pouco mais ou menos o mesmo, acrescido de um azedume sem razão aparente. Afinal, eu estava certo de que tinhas percebido que a razão era minha e que não poderia, jamais, fazer de conta que não a tinha. Enquanto tu te limitavas a não querer dar o braço a torcer, mais nada. Mesmo agora, aqui chegados. Como te podes atrever?

Do que falámos não sei. Sei que a tua amargura tinha tudo a ver com uma namorada muito jeitosa que eu devia manter à época. Ainda tenho muita pena de nunca a ter visto. Mas pronto, era do conhecimento geral, e teu muito em particular, que ela existia e as fotos - penso que haveriam fotos ou redes sociais ou alguma prova mais credível que estas linhas - comprovariam que era muito apresentável. Oh, que digo? Sabíamos todos que era um espanto, pronto. E só mesmo essa parte do teu fel por mim é que não conseguias disfarçar tão bem. Tudo o resto em nós era urbanidade e familiaridade e uma certa cumplicidade que sobrevivera. Tanto que sei que me aprestava a subir ao andar de cima, como se isso fosse vulgar, para desancar a mais nova por não se ter despedido do pai, antes de ir dormir.

Eu o mesmo. Mas tu, ai tu, tão outra. Engordaste a olhos vistos e ficaste tão menos bonita. Com o cabelo armado, à professora primária de antanho. Já se vê que o saia-casaco castanho, naquele tecido estranho que parece cheio de borbotos, com saia abaixo do joelho e os sapatos pretos, de salto baixo, à balzaquiana, não ajudavam nada a compor-te. E eu pensava: Caramba, mas porque é que se me rebola desta maneira o estômago, à conta desta senhora? Porque estarei tão angustiado por não se acabar já de repente esta situação inusitada e tudo voltar atrás? E, sobretudo, porque é que tenho tanta certeza que quando tudo estiver de novo no seu lugar, também tu serás tão bonita como te recordo?

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Escuta, uma noite destas o Porto perdeu com o Paços de Ferreira. Tu já dormias quando cheguei, porque acrescentei tertúlia à derrota: um bando de tipos a carpirem-se diante de cervejas geladas e molho de francesinha. E eu vinha acabado, moído de rever as bolas que deviam ter entrado, chateado da chuva e dos quilómetros e de toda a gente a dormir. Por nada. Perdemos, foda-se.

Devo ter adormecido relativamente depressa. Tu sabes que quanto maior a chatice, mais depressa e mais profundamente durmo. Fujo. E foi então que o meu inconsciente se decidiu a colocar-me perante uma verdadeira derrota. Não sem ter o cuidado de me apaparicar e te deixar claro o que te faria perderes-me. Como de repente serias uma pessoa amarga e feia e gorda e com as gengivas todas arrepanhadas e os dentes cariados. Lembrei-me agora mesmo disto da boca, não estou nada a inventar! Ninguém te pegava, pelo que permanecerias minha. Acho que era esse o objetivo do extreme make-over.

Confesso que acordei zangado contigo. Porque a razão era mesmo - repara, eu sei isto! - minha, independentemente de qual fosse o problema. A esse, desconheço-o. E tu esperaste que eu relevasse esse facto em beneficio do teu orgulho e deixaste-nos cair. Deixámos. Na certeza de que o outro acabaria por evitá-lo. Perdemos, como o porto em Paços. E em nenhum pedacinho do meu sonho eu quis saber do futebol. Aí tens.  

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