Mostrar mensagens com a etiqueta Figueiredo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Figueiredo. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 14 de maio de 2019

Casa Velha

(Inevitável e espesso, o silêncio vai escorrendo por entre as horas, as tarefas - reais ou inventadas - as ausências e tudo o mais que teimas em acumular para que se te encham os dias. Como magma incandescente, destrói as barreiras que laboriosamente ergueste. Um rio calmo, mas inexorável, serpenteando pelo vale, encontrando caminhos pelo meio das rochas, correndo tranquilo, sabedor de que será mar.

Ei-lo, como sabias que estaria, esteve sempre, estará, virá, tarde ou cedo: o silêncio perante ti. O que resta.)

...

A ver se consigo explicar:

É como um velho paço senhorial que se esboroa. Baço dos anos, ganhando o contorno da paisagem, do mato que o vai lentamente engolindo, camuflado pelo verdete nas paredes de pedras grandes. O torreão Sul já sem teto que se note, deixando entrar toda a luz do Universo, para que inunde as clarabóias e os ninhos de andorinha em pleno salão nobre.

Valham os pássaros e bichos rasteiros que se esgueiram entre cacos de mobília, agitando os fetos que comeram as tapeçarias antigas, para quebrarem o silêncio. A Vida persiste em formas outras, mesmo que as dobradiças de aço que resistem nas ombreiras chorem de saudades nossas.

Há crianças que passam as tardes do início do Verão a correr pelas colinas suaves, enchendo a charneca de gritos alegres e embarcando em expedições pelo corpo principal do edifício. Ali, onde ainda há quadros pendurados e fotografias que se rebelam contra a humidade; quartos onde ainda se sussurra a nossa história, ora alegre, ora um pranto, um minuto festa, outro tragédia, uma gargalhada só.

Do que pudemos deixar descobrem quem querem que tenhamos sido. Luzes no céu, Santos, dores reminiscentes que não podem explicar, água nos olhos dos adultos, lembranças vagas de fumo e produtos adicionais. E silêncio. O espesso silêncio que a simples repetição dos nossos nomes faz descer sobre a parte conhecida do Cosmos.

Designados proprietários da enorme chave de ferro que continua abrindo a porta desta aventura, sabem exatamente onde encontrar os esparsos sinais de vida na Casa Velha.

Ao fim do dia, correndo livres por onde é provável que tenha sido o jardim de rosas brancas, regressam à Casa Nova. Paredes meias, o mesmo território, um planeta diferente. E contam em algazarra as descobertas - um penico debaixo da cama, no quarto colado à parede Norte, aquele que ainda tem uma cómoda - puxam pela memória dos pais, detetam-lhes as incongruências e respeitam os silêncios magoados. Sempre ele, escorrendo como magma.

Aprendem-nos.

...

A ver se consigo explicar:

Um velho de tez por algum motivo tisnada, seco, de rugas fundas, segura com as duas mãos o chapéu preto à frente do umbigo. Um fato de três peças negro, a camisa branca, cabelo nenhum, muito direito contra a luz que se despede de uma casa velha, a cair lentamente em grandes pedaços.

Uma revoada de putos dispara de dentro do edifício na sua direção. Diríamos um enxame de abelhas a rodear um girassol único, grande e cansado. Levam-no pela mão, falando todos ao mesmo tempo, cada um como se tivesse uma etiqueta que lhe marca a proveniência, um traço distintivo, de fábrica, que na maior parte das vezes evita que lhes pergunte: e tu, de quem és? Ouve-se ao longe, enquanto o chapéu já vai de cabeça em cabeça: sim, um penico!

Deixam-no numa poltrona e, ainda que já cá não estejamos para ver quando acontecer, virá uma velha de vestido florido sentar-se ao seu colo. Soltarão ambos um gemido de articulações gastas e joelhos abusados e os outros estarão ocupados a temperar o resto das carnes, enquanto os miúdos lavam as mãos. Partilharão um breve momento de silêncio. A Casa Velha deixará cair uma telha. Nada a dizer.

...

A ver se consigo explicar:

Olá, sou eu. Como estamos hoje, meus Amores?

...


segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Trópico

Eu mino-te. I do. Eu do. Mino-te. Em células pequenas, nos tecidos moles, percorrendo o esqueleto, visitando-te, invadindo-te, demorando em ti, até sermos uma confusão de glóbulos corruptos, um emaranhado de capilares de esgoto, um rio de pus, liquefeitos, tu e eu. Nós. Um.

Amaldiçoas-me nas horas mortas. Quando te enrolas em volta das memórias e perscrutas o horizonte da esperança, quando choras longe de todos - que não de mim - e o teu soluço me desperta. Lentamente, como a dor, sentes? Ah, sim, eu sei que te esforças por ignorar esse fio, esse frio, de navalha quando te começa a cortar a entranha. Uma qualquer. Por vezes forço uma guinada, para que saibas que estou aqui, não te abandonei. Eu sou o Eterno. O.

A maior parte do tempo doo-te, apenas muito. Sem variações, por debaixo do opiáceo ainda mais forte, eu doo-te. Tu sabes que te dói, apesar da cada vez menos frequente e mais curta nuvem de fraco descanso. Porque já nos conhecemos, já nos misturámos, as tuas mitocôndrias traçando o mapa dos meus passeios matinais. Então, sossega, não há necessidade de mentires, como aos outros, está claro que me sentes, mesmo quando, em desespero, corres para os braços de uma morfina qualquer.

Há noites em que nos aninhamos, na nossa distância inexistente, partilhando histórias - as tuas - que te provocam risos entrecortados pelas lágrimas. Oiço-te pacientemente, tecendo a tua mortalha, apagando metodicamente cada pequena luz que reste acesa na tua Alma. Não sejamos hipócritas, é preciso dizê-lo claramente: as nossas noites não nos aproximam da morte do corpo, são passos seguros para a tomada da Alma. Até que te entregues.

Eu nasci para esse momento em que julgam que morres. E morrerás, evidentemente. Todos proclamarão a minha vitória, menos tu. Tu saberás que me morro contigo. Mas no fim dos passos do sofrimento, na entrada da Luz, no estertor, no suíço segundo em que desistes e me tomas a mão, aí repousa, brilhante e definitiva, a minha coroa. Só quando, exausto e derrotado, me ofereces a Alma em busca de clemência, me completas.

E assim seremos pela Eternidade. Um. Cada partícula da tua cinza um pedaço de mim, cada recordação de ti uma evocação minha. Um. 

Eu sou tu.

...

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Da Eternidade: Uma mesa ao Sol

 
Olá meu Amor, como estamos hoje?

De férias, é assim que estamos, colecionando momentos irrepetíveis, como se houvesse momentos de outro género, como se fosse possível regressar, repetir, copiar. 

Como bem sabes - uma mesa num café anónimo, no tempo em que todas eram de fumadores, uma espreguiçadeira à beira de uma piscina de cloro, tu deitada, eu sentado aos pés - não consigo evitar esta coisa de colocar os ausentes nos locais de agora. Se calhar é só uma forma de lhes dar férias, de os tirar dos ombros enquanto salto para a água, eu mais leve, eles livres deste jugo que lhes imponho. A Ti não, que ainda não me parece que tenha aceite completamente que Vives em mim. Apenas.

Deixemos isto, convenientemente, por discutir e resignemo-nos ao facto, de qualquer forma insofismável, de caminhares ao meu lado. Por agora basta-me e Tu não tens como protestar.

...

Sabe-se lá como, vim dar a sítios de churrasco nas margens, minis em punho e cigarros a queimar no fio perdido das conversas, enquanto as brasas pegam. Fomos passando, eu e Tu, por estes locais, trocando olhares cúmplices, até termos desaguado nesta esplanada sobre um rio. A sombra dos guarda-sóis vermelhos espalha-se por uma área apreciável, deixando uma mesa perdida no extremo. Ao Sol. A nossa, certamente.

Aquela em que as tuas gargalhadas parvas se entrecortariam com os acessos de tosse que prenunciam a Morte. Estaríamos praticamente deitados nas cadeiras, a torrar, desfiando um rosário de maledicência e piadas estúpidas. Os dois - ah não, os três! - plenos de Presente, ignorando com a maior naturalidade a Vida, essa coisa que correria em paralelo a uma Felicidade de momento. Lá longe, nas partes incertas onde as pessoas sobrevivem. Até que fosse segunda-feira e nos viessem agarrar pelo pescoço e esbofetear-nos com lambadas de realidade. À bruta. E saberíamos então que a culpa era completamente nossa. Como a mesa ao Sol, esquecida pelo resto da esplanada.

Na relva da margem, repousaria a enorme geleira. Façamos um breve inventário: uma bola de queijo flamengo, 350g de fiambre, um chouriço, quatro pacotes gigantes de batata frita, 20 ou 25 latas de cerveja, gelo, duas garrafas tamanho familiar de Coca-Cola, quantidade indeterminada de papos-secos, abre garrafas, uma faca de cozinha, um pacote de manteiga, um melão e uma melancia.

É certo que se entregar esta lista a qualquer um dos outros, ela crescerá, até se tornar uma geleira imensamente impossível, daquelas que podem carregar toda a Alegria do Mundo. Nenhum de nós pode ter a certeza se existia ou se foi  um épico sonho coletivo.

De pernas cruzadas à chinês, preparas em facadas certeiras as nossas sandes de queijo, com manteiga e batata frita. Os miúdos correm soltos e felizes, mergulhando no Mar da nossa inconsciência, e vêm à chamada da fome. Comem em pé, a pingar água, e sorriem. E depois riem. Porque por qualquer estranho motivo parece que não aprenderam outra coisa. E a gente aperta o pão e ouve as batatas a estalarem lá dentro e antecipa a mistura das gorduras e do sal, a maciez do flamengo e o crocante das batatas e depois o gás do malte ou do caramelo dispara uma bolha para o nariz e os portões do Paraíso abrem-se de par em par.

Os bebés espalham-se pelos seus vários pontos cardeais e nós retomamos o caminho da esplanada ou da sesta ou da geleira. Quando nos cruzarmos, alguém os empurrará para a água e depois saltaremos todos e as pessoas vão ficar a olhar. Como se o Mundo não acabasse depois do jantar.

A quantidade de escolhas racionais e partidos ponderados que estas coisas que não sei dizer me impediram de fazer e tomar, é algo que já tentei explicar milhares de vezes. Sem sucesso. Nunca passei de está perdoada à partida e serei sempre eu a dever no fim.

...

Às vezes ainda caio na esparrela de me pôr a pensar que podíamos, os que vamos sobrando, repetir, em conjunto ou cada um com os seus, estas jornadas de “vamos ao Algarve amanhã, mas acordou mau tempo e vamos em direção à Serra da Estrela, mas só até à Mealhada”. Porque é hoje. Pouco importa que tempo fará amanhã.

Mas sabes, não podemos. Continuamos a ter, descansa, parvoíce que sobeje para as gargalhadas. Temos bebés em número muito razoável e até, ou mais que tudo, a Tua Memória religiosamente preservada. Somos é outros, em outro tempo, transportando outras vidas. E não me passaria pela cabeça empurrar qualquer das crianças para dentro de água. Só os pais delas. As mães, para ser completamente exato.

Eu podia só dar-Te a mão e levar-Te a passear, porque a vista é bonita e o ar agradável. Deixar-me ficar calado, em vez de Te maçar ainda uma milionésima décima vez com a mesma história. Mas depois ia contá-la a quem? Não sei, a todos, talvez? Um dia ainda encontro a resposta para isto. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...


quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

The SEDCAS experiment III: A segunda morte de Ludemilo Silva

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.


...

Tirando o facto de estar morto, Ludemilo Silva era um homem francamente vulgar. Nem bonito, nem particularmente feio, mediano em todos os aspetos exteriores da sua inexistência. 

De tal maneira que em certa ocasião, posto por desgraçada coincidência numa daquelas linhas de reconhecimento de criminosos, metade das testemunhas o apontaram culpado, por vergonha de não saberem quem teria sido o malfeitor que atentara contra a lei, mesmo defronte dos seus narizes. Ora - pensaram - pode muito bem ter sido aquele, não estranharia se fosse. A outra metade de acusadores foi igualmente incapaz de determinar o culpado. Puderam apenas jurar a pés juntos que Ludemilo é que não fora. Não - argumentaram - um tipo deste modo vulgar não teria sido, que daria logo conta dele, tão parecido que é com boa parte dos meus vizinhos. Pelo sim, pelo não, a autoridade decidiu prendê-lo por algum tempo. Até para que não desse a ideia de terem estado somente a desperdiçar o rico tempo do transeunte e o precioso dinheirinho do erário régio. Lá naquela terra havia um Rei, já se vê.

No dia em que foi libertado, embora ninguém se lembre dele naquela prisão, Ludemilo foi bafejado pela infelicidade de bater com a cabeça no suporte do chuveiro e assim se feneceu. É certo que era um banho público, mas ninguém, do Guarda Retretes às mui infelizes senhoras da limpeza, se quis meter na morte do homem. Deixá-lo estar, é uma pessoa como a maioria delas, nenhuma diferença. Se lhe deu para se deitar um pedacinho, fecha-se a porta deste cubículo. Já é tempo de nós, os iguais a todos, sermos uns pelos outros, apre! Cubículos é que não faltam, vamos agora incomodar o senhor. 

Foi portanto já morto que Ludemilo se voltou a vestir, com muito gosto em usar a roupa interior nova que comprara especialmente para aquela ocasião, e a sair fresco e perfumado para o resto da sua morte.

Se pensam que a tristeza encharcou os Silva desta casta de Silvas, sabei que estais basto enganados. Dá-se o caso de ser este o último espécimen de um modesto ramo Silvesco. Ou seja, muito pelo contrário, avisados da forma que se avisam os mortos do falecimento dos seus mais queridos - não, não posso saber qual é, pois eu próprio me encontro consistentemente vivo, estou em crer - os Silva festejaram rijamente a breve chegada do marido, filho e irmão que tanto lhes vinha faltando. E respiraram aliviados, por se ter ele, um homem tão bom, visto livre do mal da vida. Enfim, basta morrer para se ter estado vivo, essa é que é essa.

Já percebem o imenso desgosto que a todos assolou, ao darem-se conta de que, por alguma idiossincrasia do sistema, Ludemilo era morto mas não trasladado para o lado certo do Universo. Isto é, para todos os efeitos, os Serviços consideravam-no vivo, pelo que não havia remédio para a família senão esperar que alguém do Mundo dos Vivos se decidisse a declará-lo morto. O que prometia ser uma longa espera. Mais unidos do que nunca, os Silva transformaram Ludemilo num mártir lá do lado dos mortos, com direito a velinha em frente à sua fotografia - a primeira de todas no aparador da sala - e tudo, e fizeram as delícias dos noticiários vespertinos.

Devemos aqui deter-nos, mesmo que não façamos ideia - eu não faço! - de para onde vamos, e perceber que, por incómoda e injusta que seja, a situação faz sentido, de um ponto de vista logístico. Enquanto uns não derem baixa do artigo, não podem outros vir reclamá-lo. É certo que no caso vertente se podem criar alguns fantasmas e almas penadas, mas o imbróglio que causaria o fulano estar em contacto com duas estruturas sociais, uma viva e outra nem por isso, seria infinitamente maior. Às tantas, já ninguém sabia de que lado estava e desatavam pessoas a fazerem-se de mortas quando estavam em pleno viço e outros a desenterrarem os mortos para a ceia de Natal. Ou assim.

Ludemilo não teve outro remédio que não fosse desenvencilhar-se sozinho no meio dos vivos. Sem Estado nem Igreja, valeram-lhe uns poucos comerciantes amigos - um deles este vosso criado - que, reconhecidos pelo tratamento afável e esmerada educação de todos aqueles Silva, pouco se ralaram se estava o homem vivo ou morto e trataram de lhe assegurar uma austera sobrevida: um tabique numa cave, dois fatos velhos, uma camisa branca e outra azul, umas ceroulas e duas mudas de roupa de dentro, as refeições sempre na mesma mesa, ao canto. Muito não será, mas é quanto basta para poder a pessoa levar uma morte digna, enquanto não morre de vez.

Fora das horas rigorosas que se impunha para comer e se recolher, ninguém sabe ao certo por onde penava. Juram uns que o viram na audiência de programas de televisão da manhã, outros reconheceram-no num arrepio na espinha no autocarro, alguns cumprimentaram-no à saída do cinema e em casas de má fama. Houve até quem, rapidamente internado, o tivesse pressentido a tomar posse de Presidente de uma República obscura da Micronésia.

Entre dois copos de bagaço proibido, o décimo segundo e o décimo terceiro, um dia confessou-me que, por teimosa perseverança e alto berreiro, a sua eterna metade conseguira um regime de visitas precárias d'além túmulo. E assim preenchiam as tardes, ele de bandulho aviado com o prato do dia, ela de brilho intenso e paz imensa, sentados lado a lado, em bancos separados, sem se tocarem - por manifesta impossibilidade de isso acontecer entre seres de partes opostas do Universo - no miradouro onde fizeram, tanta vida atrás, as primeiras confidências:

- Sabes Ludemilo, eu não me importo se me tomares aqui, agora mesmo. Nem um pio, homem. Mexe-te, anda.

Também não conversavam, por serem distintos os comprimentos de onda em que se exprimem os Seres nos diversos patamares da sua localização corpórea. Os que insistem em ter corpo, está claro. Ficavam só todo o tempo que podiam assim, parados, lado a lado, respirando-se.

À frente o vale, o resto da Vida e a Morte inteira. Nunca foram vistos.


By Sedcas | www.sedcas.pt

Não posso já ser preciso no número de anos que a situação se demorou, pachorrando pelos Gabinetes dos Senhores Secretários de aquém e além Mundo, espreguiçando-se em cestos de "Entrada" e fazendo férias em cestos de "Para Despacho". Sei que um dia alguém chegou esbaforido e gritou da porta, brandindo um envelope timbrado da Casa Real:

- Morreu o Ludemilo! Mesmo! De vez.

A festa que foi. Ainda hoje me lembra. 


...


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

The SEDCAS experiment II: A prisão em si

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

...

Um dia eu fujo. Hoje não que chove. Em dias assim, prefiro ficar monótono no alto da colina, debaixo do coberto, a deixar-me perder na folhagem da árvore grande. Muito desatento ao que se passa em redor, absorto no gesto automático da mão à boca, o fumo expelido em argolas espessas.

À copa, posso chamar-lhe mar. Não há Chefe de Turno que o possa impedir. Esta liberdade da mente é o terror de toda a ordem. Entre duas fumaças, gostava que me viesse - só por um apetite - um poema sobre o mar: As ondas desbastam o penhasco. Uma coisa assim, agreste. Uma fúria de água contra rocha negra, o Mar do Norte a rebentar em vagas de Vikings na costa da Normandia. E eu Thomas, no rumor da baía de Swansea, assaltado por uma estrofe súbita, toda arestas.

À copa, posso chamar-lhe deserto. Talvez seja o gosto amargo da beata que me seca a boca, a garganta uma nuvem de fumo e pó. Não há Senhor da Portaria que mande no meu horário, posso desertificar-me em paz. Fingir que o mescal me alucina e o deserto de Sonora se enche de mulheres nuas, a pele de um negro tão negro e brilhante que é quase azul. Arrasto-me, uma personagem de Bolaño, à beira da morte, provavelmente colecionando cadáveres e telas de obscuros pintores impressionistas da América do Sul. Acenderia outro cigarro, se o tivesse, antes de deixar cair na areia manchada de sangue o coldre e me entregar nos braços suados da miragem.

É pena que chova. Este tempo deixa-me as pernas moles e a vontade embaciada. De outro modo - uma azeda presa nos dentes - aí me veriam, serpenteando monte abaixo, pela sombra do arvoredo, até à saída. Não sei porquê, mas vou de chapéu de palha e camisa aos quadrados, solta por fora das calças, sem botões apertados. O calor que deve estar. Desço devagar, mastigando os passos, sem pressa. Não há por que a pessoa se apresse, em tendo a certeza de para onde vai e de quem a espera. Vou lento, aproveitando o Verão, mas inexorável. 

Vou para ti, para esse sabor a sal e Sol, eterna praia, férias permanentes. Não há Doutor Diretor que me roube delas.

By Sedcas | www.sedcas.pt
Iria, digo, não fosse a chuva. Chovendo, não saio. Podias vir visitar-me.



...

- Quer um cigarro, senhor Zé? - Diz-lhe, simpática, a bata branca.
- Pois claro, muito obrigado xôtôra.
- Enfermeira, senhor Zé, enfermeira. - Sorri-lhe. Ele faz um gesto com a mão: é a mesma coisa. Ela acende-lhe o cigarro.
- Quando nos despacharmos, podia fazer o favor de me levar para dentro. Esta chuva... - Hesita. - Parece que me deixa as pernas moles.




...

A prisão em si: ...esquecido, adormeceu.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

The SEDCAS experiment I: A marcha de Um

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

Saibam que este texto é longo, saibam que não é sobre bola, saibam que não tem graça nenhuma, nem fala particularmente mal de alguém. Não sei como ficará formatado nos vossos telefones, mas eu, se fosse a vocês, andava já para baixo até à imagem e lixava-me para o resto, embora fosse suposto que ela vos viesse a surpreender de alguma forma. Dentro da minha cabeça passam-se coisas. Mas lá está, fui eu que escrevi, portanto já sei o fim. Aliás, não sei. Nenhum de nós sabe...


________________________________

- Um caminha. Pouco mais faz. Se puder imaginar uma linha reta, é provável que Um a prossiga desde sempre. O mesmo acontece se preferir uma série de curvas e contracurvas. O meu caro amigo só muito raramente deixa a imaginação entregue à simplicidade. – Puxa uma longa fumaça do seu cigarro.

- Ora, seria um paradoxo, isso da imaginação simples. Que não da simples imaginação, já se vê. Antevejo um "mas", acertei?

- Pois claro. Digamos que, se lhe quisermos percecionar uma direção, o que está longe de ser líquido, Um marcha. Desfila, na minha mais sincera opinião.

- Ah, mas isso parece soberbo. – Aproxima-se, interessado, inclinando-se para a frente na poltrona. – Quando o diz assim, dá-lhe uma certa graça, não acha? Desfila. – Repete de olhos fechados, a ver a palavra a formar-se no lago da sua mente. Uma mulher a emergir da água, água ela mesma.

- Bom, detesto conspurcar a imagem, mas não é bem um desfile gracioso, embora tenha os seus momentos. É capaz de ser mais Ovar do que Veneza, percebe?

- Mais divertido do que bonito?

- Mais Carnaval do que Arte. Um caminha, marcha, anda. Mas a coreografia é caótica e nem vale a pena começarmos a discutir a cenografia.

- Assim tão má? – Franze um sobrolho apenas. Uma qualidade que Austin muito inveja.

- Oh, tem dias. – Reflete por um segundo. – Pois, dias. Não vá o meu caro julgar que se trata de um curto trajeto de horas. Ou uma corrida de minutos. Por momentos caminha, noutros marcha, por vezes desfila. Tem alturas que corre, alturas que dança. O cenário acompanha, isso é certo. O que não quer dizer que seja continuamente bonito. Aliás, visto friamente, é quase sempre basto desengraçado.

- Muito previsível. – Volta a recostar-se no seu assento almofadado, estofado com fino tecido, comprado a retalho numa feira de segunda mão, cruzando as mãos, as suas, que são primeiras e únicas, sobre a proeminente pança.

- Agora utilizemos a tecnologia ao dispor e aproximemos a imagem. Repara na multitude de grilhetas? E chamo a sua atenção para esta espécie de névoa que sucede a Um. Aqui, mesmo atrás. – Aponta com uma luzinha vermelha, fazendo círculos na tela.

- Sim, sim, que curioso. Tenho a certeza que as suas engenhocas modernas conseguem chegar-se ainda mais.

- Não duvide por um instante. – Com ar de menino a mostrar um brinquedo novo, certo do espanto que irá causar, senão inveja. – Esteja preparado.

Não discorramos sobre quanto muda no Universo na fração indetetável, mas muito real, de tempo que vai entre carregar num botãozinho e isso produzir algum efeito. A nossa missão aqui, se alguma, não é essa. Apesar de dar vontade. Resistamos ao impulso e concentremo-nos na tela. Como faz agora Mr. Deluxe, que se levantou de um salto, contrariando a gravidade agravada pelo seu abdómen distendido. E fica assim, as banhas ainda a abanar, de boca aberta, por um instante. Até conseguir pronunciar:

- Mas…mas…Austin! É toda uma parada! – O outro cruza as mãos atrás das costas e deixa-se estar, satisfeito, a balançar sobre os seus próprios pés.


À frente, Um. Aos seus tornozelos prende-se um número indeterminado, e indeterminável, de correntes. Embora finas como capilares, todas, algumas deixam a certeza da sua indestrutibilidade. Outras nem tanto, apesar de demonstrarem o firme propósito de se manterem alapadas à perna de Um.

Pela frente, nada. Só lá muito longe uma ideia ténue de propósito, muito para lá do vácuo próximo. As bermas do suposto caminho realizam-se a cada instante, a cada passo. Nelas se erigem as bancadas apinhadas. O movimento aqui é frenético: as raças misturadas, os géneros múltiplos, os transeuntes - de copo na mão e frituras em punho - visitam as bancas de merchandising e confraternizam alegremente. Quando não estão empenhados em aplaudir ou vaiar o desfile lá de baixo, está claro.

Porque escolhem uma das posições, não se sabe. Nem importa. Decidem na hora, pelo que mais lhes apetece, num momento de rara pureza da espécie. Como quem se cruza com alguém numa carruagem de metropolitano e pensa: partia-te as trombas todas, só não faço ideia porquê.

Logo atrás de Um, a ala dos Eternos. Entenda-se a Eternidade como o que de facto é: o período durante o qual existe. No caso vertente, Um. Ou os Eternos. De todas, é a ala mais pequena, mas o batalhão mais feroz. Armados até aos dentes, prontos – julga-se – para dar a vida e a camisa, são aqueles de quem Um se despede todas as noites. Não obrigatoriamente por palavra, gesto ou presença. Mas sempre. Mesmo que num fugaz lampejo da mente, instantes antes de se deixar a pessoa de lembrar do que a mente continuará a fazer, entregue a si própria por umas horas. Apenas.

Estes são os que podem determinar de forma mais intensa o ritmo da marcha. Um para e puxa, se Algum se atrasa. Algum puxa e para Um, se tem que descansar. De cada, desprende-se toda uma nova parada que interage com a de Um, num caos de interligações venosas e descargas elétricas mais intrincadas do que um cérebro. De macaco.

Os figurinos da Ala dos Eternos são muito diversificados, acompanhando frequentemente o que veste a disposição de Um, assim como, noutro passo a seguir, impõem a Um a cor do seu estado de Alma. O efeito é estupendo para o público: uma paleta de cores e suas emoções, indo do lúgubre ao orgasmo em segundos, pontilhando os mesmos momentos de alegria e dor, luxúria e amor filial e, dada a parada que agora Austin descreve ao seu embevecido amigo, uma dose reforçada de infantilidade. E momentos de pura razão, abotoados até ao pescoço, em colarinhos de folhos e rendas e espartilhos pela cintura. Abaixo, uma boia com a cabeça de um pato e fio dental, as plantas dos pés em areia muito fina. Logo a seguir uma galocha a desbravar um oceano de lama peganhenta, o tronco nu no Verão do alpendre, cigarro ao canto da boca e uma melodia familiar: tananananaaa tana tana tanananaaa sooo, so you think you can tell…

Segue-se o rebanho dos zombies. Sempre de grande impacto para os espetadores, esta ala arrasta-se atrás de Um sem muita conversa audível, para além dos seus típicos grunhidos cinematográficos, quase por obrigação. A verdade é que deve ser muito maçador estarem sempre a emitir aquele som arranhado da garganta. Já para não dizer que dá cabo das cordas vocais à pessoa, mesmo que morta. Mas enfim, cada um será para o que morre e as tradições são um tanto rígidas nesta dimensão. Assim parece.

Para o que importa, lá vão, braços estendidos e vísceras de fora, decompondo-se pelo caminho, mas estranhamente intactos. Como que cristalizados num momento, nem sempre o da Morte, nem sempre eles mesmos. Imagens que Um guarda, pessoas que toma por suas, ainda que o tempo o vá fazendo duvidar de que seriam estas que insiste em carregar. Pode muito bem ter-se esquecido, tê-las construído em peças, como se fossem legos de palavras, gargalhadas, lágrimas, cheiros e tons de voz.

Se todos são de facto cadáveres ou se estão vivos de um ponto de vista biológico, não podemos saber. Em alguns casos, nem Um o saberá. Importa apenas que caiam na categoria dos que morreram para esta parada. Ou mataram o porta-estandarte, uma delas. Por permanecerem de tanta relevância, aqui caminham, poucos metros atrás de Um.

É muito curioso perceber que esta é, com frequência, a zona do descanso. Como se Um se entregasse nos braços dos mortos-vivos: uns mordem-lhe a carótida, outros catam-lhe os longos cabelos que não possui, outros tomam-no no colo, todos o protegem à sua falecida maneira. Não é que não seja um pouco nojento – gore, é como se diz, de forma um pouco eufemística, talvez. Acrescentaria Austin. – mas é aparentemente retemperante, este abandono do concreto. Ora, nem isso podemos dizer, sendo perfeitamente realistas.

O estado não é de transe ou de total vazio da mente – mindfulness, apesar do paradoxo, meu caro Deluxe. – muito pelo contrário. Os mortos mortos e os mortos vivos, todos caminhando sem parança do seu desengonçado jeito, são bestialmente concretos. Existem e conversam com Um, afagam-lhe o antebraço, compreensivos, ou cutucam-lhe o peito com o indicador esquelético, incentivando ou acusando, isso não temos como descobrir. Não a esta segura distância, pelo menos. Também não seria correto afirmar que Um repousa, tal a refrega de valentes mordidelas e alguns encontrões. Diremos, por respeito à verdade, que se encontra. No mais profundo da Morte, qualquer que seja o seu estado, revê os traços de si e refaz o seu caminho. Renova-se. É certo que parece um pouco tolo, ninguém o nega.

Siga a dança para a ala dos Frequentes. Como o nome deixa perceber, são uns que não sendo permanentes estão muito presentes. Manifestam-se em socalcos, uns quantos bastante profundos, traçados na pele de Um. Juntos constituem uma profusão de tempos deveras assinalável. Mistura-se o passado e o futuro, numa orgia de conjugações que constroem grande parte do presente. Antecedem e derivam, inferem e deduzem, estão e já foram. De todas, são a ala mais ativa, a longa distância. Dir-se-ia um formigueiro em plena atividade, só que sem carreiros ordenados nem tarefas explicitas. O trânsito do Cairo, um souk sem turistas, a China se fosse transferida para o Lichtenstein, com todos os seus pacientes chineses.

Eis aqui chegado o primeiro carro alegórico: de baloiços suspensos em altas traves, balançam seminuas mulheres, de generosos peitos e curvas inatacáveis, sorrindo e acenando permanentemente à multidão. Nas laterais, poetas lançam aos pés descalços do povo do peão rascunhos das suas obras inacabadas; intercalados por romancistas muito improváveis que leem, aos gritos, capítulos completos das suas novelas. A um canto, recria-se um openspace, onde anacrónicos mangas de alpaca despacham ofícios relativos ao julgamento de um inseto gigante. Bem no centro da viatura, Kant e Schopenhauer jogam à sueca contra Descartes e Engels, enquanto uma profusão de gregos faz grande alarido, aguardando a sua vez no bota-fora. Entre todos, pelo meio da Vida, crianças em estado adulto correm atrás de uma bola. Às vezes de espelhos. Dos altifalantes, berram i am the law; em ocasiões sussurram, gelando o sangue do mais destemido, you’re a beast, evil one; e é frequente todos pararem quando uma sereia toma o microfone e canta whatever walks in my heart will walk alone. Não se sabe se é figurino ou metade peixe, só que todos os marinheiros caem mortos.

Tossindo o fumo negro do escape do carro à sua frente, vem a ala do Enjoo. É uma imensa massa de indivíduos não anónimos que condicionam, das mais díspares maneiras, o ritmo do desfile. Têm a fabulosa qualidade de liquefazer o asfalto, atrasando a trupe. E de criar com essa pasta ondas que balançam e balançam a mole, vai e vem, sooooobe e deeeesce, de cá para lá e para os lados e vamos de novo, do princípio, sem quase sair do lugar. Daí o nome - concluirá vitorioso Mr. Deluxe, entrelaçando os dedos por altura do seu mítico umbigo.

Sendo grande a anterior, é ainda maior a seguinte. É fácil de concluir à vista desarmada, basta olhar para a mancha de marchantes que enche todo o campo de visão, nos seus trajes multicolores e feitios variados. Soltam foguetes e lançam morteiros, disparam confettis e balas de canhão, festejam e matam. Um não os conseguirá nomear, mesmo que tenha de alguns a vaga impressão de os reconhecer. Talvez do supermercado. Todos se cruzam, por algum motivo, no caminho e lhe atrasam ou adiantam o passo, consoante as necessidades do seu único propósito: caminharem também eles.

Encerra-se agora o cortejo, com grade algazarra em volta do segundo carro alegórico: um enorme, desproporcional, imenso ponto de interrogação sobre rodas. Conduzido por um palhaço de ar um tanto aterrador. Mais Joker do que Batatinha. O sinal de pontuação escorre sangue, suor e lágrimas. O que seria um belo cliché. Nada como fechar a estória com uma frase feita, criando empatia transversal com a audiência. Só que cheira a rosas brancas e flores campestres amarelas e tulipas quase negras. A ovos estrelados e a caril de camarão, em dias marcados. Lá se vai a chave de ouro.

À medida que avança, a um tempo arrastando-se e planando quase diáfano, aumenta a comichão em pontos determinados das costas. As asas distendem-se.


By Sedcas | www.sedcas.pt



- Que desilusão, Austin. Mudam-se uns sinais e algumas referências e podia muito bem ser você a desfilar. Tenho até a impressão de ter adormecido em algumas partes. – Arenga Mr. Deluxe, bebericando de um balão de vinho tinto aquecido.



- Ora, vá-se foder, sim, Deluxe? Mudando isto e aquilo, pode ser Um qualquer.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A Divina Providência (about last night)



- Confirma-se Senhor, não está lá.
- Como não está lá? Claro que está. Tenho aqui escrito que está. Viste na cadeira do costume, certo? - Espantado.
- Naturalmente, Senhor.
 - Ora foda-se, como é possível? Ah e tal, porque sois Deus e assim, podeis tudo e tudo sabeis, renhéunhéu omnicoiso. Balelas, Pedro! Nem onde para o labrego Eu sei. Espetaculares os Serviços, sim senhor, palmas para os Serviços, essa cambada de inúteis. - Aplaude ironicamente. - Quem é o Santo de plantão?
- Todos, Senhor. - Um tanto irritado.
- Hã? Todos os Santos? - Perplexo.
- Pois, Senhor, todos. Não tenho a culpa que tivesse tido a brilhante ideia de trazer a maralha toda para a sede um dia por ano, pois não? Depois põem-se a carregar nos botões e não percebem um boi disto e dá merda, pois claro que dá. - Explodindo.
- ... - De boca aberta.
- Desculpe, Senhor. - Ajoelha-se a Seus pés. - Desculpe. Irritam-me com as suas perguntas pacóvias, mais as sandálias cheias de lama e trazem bichos e isso tudo. Fica aqui uma esterqueira que não se pode. E pronto, implicam com os botões e as luzinhas e às tantas está tudo destrambelhado. - Baixa a cabeça.
- Pronto, pronto, não se fala mais nisso, deixa lá. - Pousa-lhe a mão no cabelo, magnânimo.
- Mas... baralhámos as ideias todas áquele moço que manda. No propósito de deixar o outro insolente com um grande melão. E vai-se a ver, o tipo não está, à conta da invasão dos parolos. - À beira do ataque de ansiedade.
- Ora, acerta-lhe os miolos e já está.
- Só que já começou... - Interrompido por um suspiro de impaciência.
- Tudo Eu, tudo Eu, dass. - Olha para o monitor. - Pá, sei lá, aleija alguém. Olha, pode ser ali o grandalhão. 
- Qual, Senhor?
- Sei cá os nomes, Pedro. Aquele ali, o Baltazar ou o raisparta. - Aponta.

...

- Aha, achei! - Salta de contentamento na cadeira. O outro aproxima-se. Pergunta:
- Está onde, Senhor?
- Naquela coisa da música do Demo, acho eu. - De binóculos na grande janela.
- Credo! - Benze-se.
- Oh, deixa-te de merdas Pedro, é bem catita. - Abana a Divina cabeça, cantando em surdina: - Todos os Santos não chega-a-ram. É dia, é dia, em Por-tu-gal.
- Vamos lá esbardalhá-lo duma escada ou assim, Senhor? 
- Não dá. Correu tudo mal para a nossa pequena partida de hoje, oh Pescador. Repara. - Passa-lhe os binóculos.
- Oh, só porque está com a rapariga? 
- Ora, simpatizo com a cachopa, que queres? Sobretudo ao nível dos glúteos. - Semicerra os olhos, sonhador.
- Senhor! - Chocado.
- Err...pois, não, não é por isso, pois claro que não...errr... é que... - Arranca-lhe os binóculos. - Lá está! Lá está! Anjos! - Exclama aliviado.
- Anjos?
- Sim, Pedro, o tipo está com anjos, ohtubêlá. - Entrega-lhe de novo as lunetas. O outro percorre repetidamente todo o espaço. Com um dedo, o Divino eleva-lhe o olhar. Sussurra: - Ali em cima, Pedro. A fumar.
- Ui, pois é. Bolas. Dupla proteção. Regras são regras, Senhor. - Resignado.
- O grande mariconço! Já a moça o guardava, assim então, era um trinta e um. Fica para outra ocasião, não te rales. - Passa-lhe a mão por cima dos ombros. - Diz-me cá, que horas são isto?
- Meia noite, Senhor.
- Epá, vamos é despachar! Temos uma festa de anos, Pedro.
- Eish, quase me esquecia. Deixe-me só ir chamar a malta, Senhor.
- Tranquilo rapaz, ainda está ali a tomar conta e a acabar o cigarro. Junta lá os Santos Todos e abre uma mini. Oh Pedro, olha lá... - O Pescador trava e volta atrás. - Temos cá Guronsan, pois temos?

...

Soundtrack to all Saints: Everywhere i go, she will know.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O péssimo timing do Senhor Silva (inclui A Culpa é do Cavani)



Basmati para um caril de camarão; duas batatas a murro para uma posta alta de bacalhau na brasa; uma mão cheia de castanhas a assar com o cachaço; o ovo a cavalo do hambúrguer de salmão fumado, Tasca's way; meia dúzia de croutons na sopa de peixe do Silva.

O Sol na parte de dentro da coxa, depois de uma manhã de sexo; as tuas costas no peito, antes de adormecer; Happy par Clinique; Running Free a entrar na autoestrada - out of money, out of luck, got nowhere to call my own, hit the gas and here i go... - uma imperial, que não um fino, na esplanada da praia de São Lourenço; a Maria Amélia antes do hino da Champions.

( O autor reflete e decide manter o tema:

Pois, ia-me perdendo. Porque balanço em mais um comboio e a distância que isso cava me vai pesando mais a cada ano. Mês. Pesava menos anteontem, pronto. Isso faz-me derivar de tudo para Saudade. Mas era de bola que vos queria falar. 

O autor apercebe-se que viveu um momento de esquizofrenia positiva e, sem mais nem menos, ri-se e apetece-lhe dar uma palmada nas costas do Jorge Vassalo. O autor pondera cagar nas responsabilidades e dar meia volta no Entroncamento. )

De facto, há coisas que não são essenciais, no sentido literal de não serem a essência do fenómeno, mas fazem uma diferença tão grande que passam a ser uma marca distintiva. O acompanhamento perfeito. Como quarta foi de terça. 

Sim, é bola. Sim, sou um imbecil, Senhor Presidente.

...

A estrondosa vitória do nosso FCP no Mónaco, já foi abordada por todos em todo o lado. Em nenhum sítio de forma tão aparvalhada e, já agora, sonora, como no


Não imaginam a surpresa e a alegria de percebermos que alguns de vós, de facto, nos ouvem. Também não fazem ideia de quanto nos divertimos a gravar cada jornada. E daí, até é provável que façam.

Só ouvindo mesmo.

...

São atribuídas ao nosso treinador algumas declarações, obtidas em torno do jogo de terça, não sei se antes ou depois, se antes e depois, nem agora interessa. O que me importa é o conteúdo, porque me preocupa um pouco. Poucochinho. Uma ervilha, vá. Só que as ervilhas germinam.

Então, parece que o nosso Sérgio - que vitória rapaz, vénias! - terá dito em alguma altura qualquer coisa como;

Epá, deram-me um guarda-redes e foi isso. Olha, ainda nem o convoquei. De resto, nada, nem um reforço.

Já sei que há muito quem concorde com esta acepção. Pessoalmente, discordo. Podem intuir que o treinador queria outros jogadores, diferentes, melhores, piores e capazes de andar de salto alto, é tudo indiferente. O facto é que é falso que não tenhamos tido reforços. 

Não contratámos mais do que o Vaná, lá isso não. Mas Aboubakar, Marega, Ricardo Pereira, Hernâni e Sérgio Oliveira, não constavam do plantel do FCP que terminou a época passada. Para mim, são reforços. É particularmente interessante reparar no impacto que têm na equipa, não? Mérito deles e, muito!, do treinador.

Sobretudo, não gosto do tom. Não se adequa ao discurso que Conceição tão bem vem mantendo. Aquele de que os jogadores são excelentes, da satisfação com o grupo ser plena e a confiança na prossecução dos objetivos total. Pá, não sei, soa-me a "eu não terei a culpa".

Da mesma forma que é um disparate pensar que a Direção, noneadamente o Presidente, não teve nada a ver com os fracassos de anos recentes; é estupido pensar que alguém poderia tirar o corpo de qualquer novo insucesso. Verdade seja dita, o único insucesso até agora foi o jogo com o Besiktas. O primeiro a assumir a responsabilidade foi o treinador. Well done!

...

Hoje, volto a ler referências a declarações do meu treinador - finalmente temos um de novo, chiça! - que não me sossegam. Agora foi:

Ui, guita não há, é para esquecer. Tive que andar a aproveitar restos e a apostar em jovens. Para já está a correr bem, mas não é fácil. Ser Campeão Nacional será o maior desafio da História do FCP.

Poooooiiis, só que não. 

Meu vitorioso e querido Sérgio, a História do nosso clube está cheia de grandes desafios. Maiores do que esse de seres campeão, acredita. 

Assim de repente, já serias nascido em 1982 para saberes da dimensão do desafio desse Verão. Que te parece a ideia de pegares num clube que, mais do que dinheiro para comprar jogadores, não tinha nota para pagar a conta da água? Pois moço, tomavas banho em casa? 

Olha, houve quem enfrentasse e vencesse esses desafios. E fosse campeão. Alguns são já gratas memórias do nosso Livro Dourado. Outro, podes cumprimentá-lo respeitosamente todos os dias. Seu sortudo. Sim, na verdade, és tu quem tem a sorte de aqui estares. Not the other way around.

Depois, gostava de perceber o que é isso dos jovens. Está bem que catraios com 24 ou 25 anos são jovens. Mas olha que já têm basta quilometragem. Não era a esses que te referias, certo?

Então a quem seria? A Mikel, o Turco? A Rafa, o Bife? Rui da Rotunda? Baleno e Barela? Govea, o Belga? Quais jovens? Eu?

Confesso, não gosto de sinais de malta a pôr-se em bicos de pés e espero que o contexto e o tom e tutti quanti me tenham dado a ideia errada. O meu maior receio em relação ao nosso treinador, tinha a ver com uma certa tendência...errr...Jesuíta que lhe notei em Braga. E em Guimarães. Os franciús que falem por si. Quero muito ficar sossegado em relação a isso. Porque há coisas que nenhuma vitória paga. Falo por mim, pois claro.

Se para dentro - do balneário, do Portismo, do País - dizes Nós, mantém a palavra quando te põem microfones diferentes à frente. Não que mintas, de maneira nenhuma, mas esqueces-te de que o líder vencedor - que serás! - conduziu uma equipa. Não a salvou. Nem Jesus salvou a Humanidade. Get it?

Que má altura para discordar do Sérgio, não é? Kékássaber.


terça-feira, 4 de julho de 2017

Da memória - Carved in soul

Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

És uma das minhas primeiras memórias, sabias? Essa história da vida uterina e de se lembrarem as pessoas de nascer e isso tudo, a mim não acontece. Devia andar distraído no útero e ocupado com os brinquedos no berço.

Quando puxo a fita toda para trás, como fazíamos com os gravadores, chego a Ti. É apenas um fragmento: Não me lembro da Tua roupa, nem da Tua expressão. A bem dizer, não recordo sequer o Teu rosto. Sei que estavas linda, porque sim. É um passeio que, pelo menos a esta distância, parece muito largo, numa curva. Há um carro estacionado, alguém lá dentro, Tu cá fora. É provável que a Mamã esteja por perto, mas não te posso jurar. Estás tão contente e eu tão feliz. Não sei o motivo da tua alegria, mas eu pulo de Felicidade só porque chegaste. É tão puro. 

Sim, a Mãe está. É pela vaga reminiscência da Sua presença que sei que é uma visita fugaz. Tens pressa. Uma sombra no meu contentamento.

Vá, sabemos os dois que o mais natural é teres levado uma prenda e esse ser também o motivo de tanta algazarra. Porventura o carro a pedais. Porra, claro que me lembro. Não posso esquecer.

Hoje sei que uma parte importante de mim tem origem nesse brinquedo. O meu passaporte para a liberdade, para a imensa vastidão desconhecida do quintal dos Avós. O primeiro amigo - sim, aquele carro era meu amigo - a ensinar-me que ter medo de nós próprios é, muitas vezes, uma atitude inteligente. Mesmo que não nos impeça de acelerarmos, a toda a brida de pernas de 4 ou 5 anos, contra os muros. Só para perceber o que acontece e porque a adrenalina da velocidade vale bem a ferida e a nódoa negra. 

Pura sorte, querida, pura sorte. À custa desse bambúrrio, nunca me atrevi a ter uma mota. Foi por aí que começaste a salvar-me a Vida. Era África e o Tempo infinito.

Claro que também era por ele que a Avó me apanhava nos anexos dos criados, à hora da sesta. A jogar bola, se calhar. A jogar áquela coisa das pedras nos buracos feitos no chão. Não sei o nome, mas lembro-me que era péssimo. Riam-se muito de mim, os filhos amigos e os pais e as mães deles. Depois, elas davam-me colo, como a todos os outros pretinhos. Até a Avó gritar Paulinho! Denunciado pela perniciosa prática do estacionamento selvagem. Burro.

Se calhar, nada disto aconteceu. Podem bem ser só construções da minha mente, essa coisa enrolada sobre si mesma em múltiplos nós. Mas o carro, Tu, o passeio, e a Felicidade de teres chegado, isso é certo. Mostro-Te as fotos, se não te lembrares. Mostro-Te a Alma, se duvidares.

Farto-me de ouvir pessoas dizerem que é melhor manifestarmos o nosso Amor pelos outros enquanto podemos. Nós ou eles. Faz-me confusão isso. Como é que as pessoas se Amam e não dizem? Deve ser muito doloroso manterem-se calados.

Nós dissemo-nos Amo-te todos os dias em que nos falámos. Runs in the family. Será que gastamos a palavra? 

Nos dias em que não soubemos um do outro, mesmo naqueles em que possas ter precisado do Irmão que - egoista, cansado, distraído - não esteve, sei que nos Amámos. Porque a minha primeira memória é ficar Feliz por Te ver. Estás gravada na minha Alma.

( Oh, eu sei da ausência. E dói. Mas menos do que um tumor no úmero. Menos do que os espelhos que ignoravas. Deixa-me estar só a remexer na suportável dor da memória. Nessa, ainda encontro muitas forças novas. Não Te permitirei que me obrigues a encarar a Tua dor, por agora. Not just yet. )

Acho que, mais do que se reconhecer uma coisa tão evidente como os Amores, precisamos de mostrar que entendemos os pequenos gestos. E os grandes sacrifícios também. Conferir-lhes valor. O mesmo que quem os pratica lhes atribui. Um beijo, um sorriso, uma flor, uma tarde de quarenta graus e sexo desvairado, uma série de disparates - em sequência - para remendar a Vida dos que se Ama acima da Vida, um carro. De brincar que seja.

Sou fraquinho nisso e Tu foste sempre tão eficaz. Vou tentar melhorar, mas não sei se conseguirei. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...

terça-feira, 2 de maio de 2017

Da Saudade - Never walk alone

By Sedcas | www.sedcas.pt
Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

Compreendes que ter saudades Tuas é uma grande porra, certo? É o tipo de pulga que nem o Godinho conseguiria matar, pelo que não se alivia a gente. Já se sabe que, este tempo passado, nos vamos habituando a viver com a comichão. Que é diferente de termos aprendido a suportar, dóceis, as ferradelas.

Sobretudo porque esta dor não é estável e contínua. Se fosse sempre e só uma moínha no peito, havíamos de fazer pazes com ela. Talvez pudéssemos até acarinhá-la, como a um defeito de caráter que não se consegue corrigir. Mas oscila, vai de monte em planalto, auto-anunciando-se, vaidosa e súbita. Mesmo que já se saiba, que se prepare a pessoa, que esteja atenta aos mínimos sinais, não se evita a surpresa. É como a Morte de alguém que se Ama. 

De repente, está um a fazer a barba, outra a mudar uma fralda, aquele a acabar a primeira centena de quilómetros do dia, esta a acender um cigarro carregado de culpa, outro a atirar uma bola a um cão - como se fosse uma parede - e sobrevém a Saudade. Uma lâmina romba a rasgar linhas Barrocas num pedaço de carne ao calhas, em cada um de nós.

Só um momento de intensa dor a seguir é que pode chegar a resignação. Muito depois - se não usares as medidas aritméticas, mas as da perda - a eventual camada racional que permite continuar, praticamente indiferente, o dia: Um corte no rosto, um choro de birra, um resvalo na berma de uma estrada baça, uma beata de revolta, uma lágrima depois. 

Vivemos essas Eternidades como tributo às alegrias que nos vamos prometendo. Fazes-me o grande favor de não nos deixares falhar. Desculpa a maçada. Não que queira sobrecarregar-Te com esta responsabilidade, é só para que saibas que continuamos a contar contigo.

Talvez seja triste, isto de contar com os mortos para se fazer a Vida. Mas, se devo mesmo dizer-Te, acho que nos estamos bem a ralar para o que possa parecer. É que, no fim do dia, não conseguiremos explicar de que forma o que nos sobra de Ti é uma parte tão grande de nós. E é tanto e nos puxa tão para a frente: 

Para os lugares em que, por todos, por Ti, por cada um, do fundo dos gigantescos corações que nos ensinaste a ter, somos Alegres e seremos Felizes. Ainda que seja aos bocadinhos.

Gosto desse sorriso, embora nunca saiba se é ternura ou dúvida. Não me importa, ficas bonita com ele, ficaste sempre. E vá, deve ser ternura, porque é evidente para ambos que não te posso mentir. Nem quando preferias que não te dissesse a verdade. A minha, está claro. Hoje, é esta:

A Saudade que tenho de Ti é igual à de muitos outros, é seguro. Ainda que triste, traz-me o melhor de mim. Desejo muito ardentemente que a eles também.

Como vês, não tenho ferramentas para deixar de sentir a falta. Só esta certeza de que sabes que eu posso. O que for. Prometo-Te conseguir. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...


sexta-feira, 10 de março de 2017

Anacrónico

In blancke, DeviantArt




Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

Já cheira a Primavera, o que significa que é bom que tenha poupado bastante durante o Inverno, para a renda de lenços de papel e Atarax. Para ser honesto, já desde fevereiro que me comicha o nariz - abençoada flexibilidade - à conta das mimosas. Está claro que vale bem os espirros, de feio que seria o Mundo sem essa praga amarela, incontrolável, omnipresente na beira de todos os caminhos.

Voltei por estes dias à Fundação. Estás certa, se pensas que passei por nós nos átrios imaculados, nos espaços arejados, nas vidraças rasgadas para o jardim interior, nos sorrisos de todas as receções. Lá estávamos, uma vez a tomar café e a falar de um tempo que podia ser sem Ti; outra a fumar contigo na curva da entrada; outra a fazer planos para roubar o telefone aos senhores. E só com muito esforço me lembrei do consultório e da ciência.

O Tempo é uma questão muito dúbia quando És o assunto. O sítio está na mesma, o que não será de estranhar. Mas no primeiro passo lá dentro, os meus olhos procuraram referências. Como um velho habitante de Vilarinho, a mirar as ruínas afundadas na albufeira. Não passaram esses dias todos, segundo me explico no instante seguinte.

Tu sabes que vou de espírito mais leve, confiança elevada, um sorriso mais franco e ideias muito claras. Mas de armadura, em todo o caso. Conhecemos o Medo, eu e Tu. Agora não me tolhe, mas mantenho-lhe o respeito. 

Sei que está lá, espreitando pelas minhas manhãs escuras a comer quilómetros por instinto, a mente a perder-se pela letra de uma canção; sinto-o a tapar-me a boca e o nariz - que mão enorme tem o Medo - só para me mostrar o que seria viver sem respirar; e passeia sempre connosco nestes lugares, acomodado nas suas diferentes intensidades: Hoje de raspão, como ontem a rasgar a carne em facadas certeiras.

Reconheci os sinais: A cadeira de rodas da falta de força, os gorros da quimio, as bochechas da cortisona, as mãos nos olhos, do cansaço extremo da sobrevida. Tudo temperado com o ar confiante e a expressão de carinho alegre do pessoal residente. Circulante.

Mas o estalo não foi, nunca seria, rever-Te. A surpresa - sei lá eu porquê, perguntas cada coisa! - foi reconhecer-nos. Detetar os nossos sinais, perceber que, muito provavelmente, nós - os que te empurraram por corredores - sorriamos aquele sorriso tão triste; passávamos a mão na tua cara como cegos a decorá-la; dizíamos-te que sim a nada, enquanto procurávamos uma gargalhada parva. A diferença é que a encontrámos sempre. Porque nos ajudavas. Quase sempre.

A minha dor maior é o Medo. É por isso que sei que Amo quando a primeira opção é evitar que tenham Medo. Este de maiúscula, o que se tem do Nada desconhecido, da completa Solidão sem prazo. Não pelo Um, mas pela ausência do Outro, pela falta de notícia, por não saber se alguma coisa o amedronta tanto que sinta Medo.

Tu morreste-nos. Eu sei que isso significa que não tens mais Medo. E venho dar-te notícias da nossa Vida, para que saibas que cá estamos, enfrentando com risos parvos os nossos monstros. Para que possas ir descansando, sem tirares os olhos de nós e dos sítios por onde vamos.

Saí pela porta de sempre, não há outra. Repeti a sensação de que lhes é mais importante o procedimento do que o resultado - como eu a queixar-me de que o FCP jogou mal, depois de ter ganho - mas tranquilo em mãos dadas. A minha Eternidade, por escolha, nos dedos entrelaçados. 

Num dos passos a caminho do Mundo das pessoas comuns, fora da Fundação, em direção aos magníficos planos do resto daquele dia - curiosamente, tão parecidos com outros de um dia seguinte - deixei de saber se passou muito tempo e já lá vai o Inverno; ou se foi mesmo agora e ainda nem é Primavera. A primeira.

Acontece-me sempre isto nos Teus lugares. Tenho dificuldades de perceção temporal, sinto-me assim, estranho. Anacrónico. Não sei porquê. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Exercício: O que diz Molero





- E continua institucionalizado, certo?

- Sim, quando está vivo. Nas outras alturas, não temos como saber, está claro.

- É muito estranho, não lhe parece, meu caro Austin? Quantas vezes é suposto a pessoa morrer? Uma é certa.

- Molero diz, a páginas cento e picos, que falou com um tal de Maynard, suposto assassino profissional, recorrentemente contratado para limpar o sarampo ao rapaz. - Detém-se numa página. Bate-lhe com a mão. - Cá está!

De o ter matado várias vezes, acabámos por nos tornar amigos. Enfim, talvez seja apenas um exagero da minha solidão, quaisquer dois dedos de conversa me parecem uma festa. Falo pouco, tirando a úlcera, que precisa mais de atenção do que a Olga. E de copos de leite também.

Ele morre sempre com os vincos da testa muito pronunciados, carregado de culpa. Já se sabe que procuro ser eficaz: Enrosco o silenciador pela calada, quando ele se distrai, e despacho a coisa com um tiro único. Pum! Em cheio na têmpora. Compreenda que nutro um certo carinho pelo moço.

- Aqui, Molero disserta sobre a condição solitária da profissão de Maynard. - Desfolha páginas, à procura. - Ah, é isto!

Só por volta da duzentos é que se explica esta coisa da morte repetida do Rapaz. Aparentemente, morre para alguém. Segundo o relatório, embora sem possibilidade de prova factual, há um momento em que outro decide que o melhor a fazer é dá-lo como morto e já está. Molero levanta a hipótese de o fazerem em nome de um instinto de autopreservacão. E lá vai o tal de Maynard tratar do assunto.

- O Deluxe não me leve a mal, e sabe que tenho Molero em elevada consideração, mas parece-me curto enquanto explicação para um fenómeno tão inaudito, como seja o desacontecimento de um indivíduo falecer mais do que uma vez. - Austin coça a cabeça, sem tirar os olhos das folhas. Arrisca continuar:

- Molero acrescenta que outras vezes se tratará mais de um suicídio. Isto é, picado pelo mesmo instinto dos autores morais das outras mortes, o próprio Rapaz decide, em ocasiões, morrer-se. A este respeito, cita-se, de novo, Maynard:

O modus operandi é o mesmo. Mas ele está, por norma, mais calmo. Conversamos mais longamente, nessas alturas. O que não muda é o sorriso.

- Hã? Qual sorriso?

- Parece que, uma vez cadáver, isto é, tendo morrido para alguém ou tendo tratado de se matar para qualquer um, o Rapaz ganha um sorriso. Há mesmo quem descreva o semblante como plácido.

Molero esteve com uma tal Beretta, mulher de cabelos escuros e olhos faiscantes, a quem, pelos vistos, o Rapaz se terá confessado antes de morrer. Uma das vezes, quero dizer. Veja. - Aponta as linhas e segue-as com o dedo.

Oh, no fundo, percebe-se. Repare que ele acabou por encontrar uma forma pura de Amor. Que é estática e, de um ponto de vista prático, bastante inútil. É Amor, só, nada mais. Nada decorre dele, nem se infere, nem se espera. Como se fosse uma Estrela, entende? Brilha e Está. E são milhões de milhares de anos luz de distância. Não é por isso que deixa de aquecer.

Ele volta sempre ao princípio. Ao início de uma estrada impecavelmente alcatroada, serpenteando entre suaves colinas e campos de lirios e malmequeres e margaridas, bordejada de mimosas alegres e atentas. Afinal, é fevereiro. 

Se esse lugar é o ponto de fuga, uma espécie de morte portanto, é também o início do caminho, breve, que o leva inevitavelmente ao mesmo local: Casa. Percorre-o a correr, para chegar depressa.

Chegado, há sempre ovos estrelados no molho dos bifes. Diz que há.

- São os melhores, meu amigo, disso não há dúvida! Molero conta que, da única vez que conseguiu estar com o Rapaz, o encontrou uma pessoa Feliz.

- E viva, o que já não é mau. Tenho a certeza de que há um motivo ininteligível para essa Felicidade. - Suspira.

- De facto. Segundo Molero, deve-se ao facto de, vou citar, "Num Mundo de gajas  apenas boas, ter sido abençoado por Mulheres Bonitas".

- Upa! Para que saiba, meu caro Austin. -  Fecha o dossier.

...

Com uma vénia ao imortal Dinis Machado e ao seu lendário Molero. E a Dennis McShade e ao seu anti-herói Peter Maynard, meu herói para sempre.

Para as minhas Mulheres Bonitas, todas, independentemente do estado, com Amores. Vários.

...

Soundtrack to Life: Take it all!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Tocata e Fuga

www.countrydaylittleschool.com

Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

Pois lá voltei aos teus sítios. Lutámos tanto em terras estranhas, que pareceu que tinha esquecido esses lugares. E os significados. É sempre assim, só quando a adrenalina baixa é que se volta a ver mais claro.

Acreditas que tinha uma espécie de roteiro para a Peregrinação de Saudade? Yaaaa, logo eu, está bem abelha. Mas sim, era esse o plano: Reencontrar-Te nas mesas certas, nos rostos familiares, nos espaços fedorentos em que é permitido fumar. E deixar-me ficar, fugaz, a respirar contigo.

Não fui a nenhum, pois claro. Apanhou-me desprevenido uma passagem inesperada pelo Moleiro. Travei, pisquei para a direita - sim, exatamente no mesmo sentido da última vez - desculpei-me de braço levantado ao condutor de trás e segui em frente. Em fuga, provavelmente.

Claro que há fortes possibilidades de os pastéis continuarem deliciosos. Mas estaríamos lá os dois, ambos num esforço terrível para não sermos uma explosão de lágrimas e despedidas, a mentirmo-nos em disparates cansados, o sentido prático acima do sentimento e das vergonhas. Ah não, não duvido por um instante que isso também fosse Amor. Só não teria a quem o entregar agora e isso aleija. Portanto, piro-me.

Diz que não devo fazer isso. Eu mesmo me recrimino, por considerar uma espécie de fraqueza. Homem que é homem enfrenta, pega pelos cornos, dá o peito às balas. Passa aí o queijo e tranca o gato, iiic.

Vai dai, tenho passado os dias a matutar nisto. Será que pretendo esquecer os maus tempos? Será que ainda está muito fresca a memória da decadência e não é essa pessoa que quero recordar? Será que era melhor ter continuado entorpecido em modo robótico? Seremos campeões?

Pois! É isso que eu penso também. Afinal, quem tem o medidor da qualidade  dos tempos? Deus sabe das aflições e das dores. Alegria fomos, isso sim. Também em camas de hospital, em salas de espera da Morte, nos intervalos dos sofrimentos maiores. Temos que ser honestos, however, e admitir que isto foi o piorzinho, porque irrecuperável. 

És capaz de ter razão, está a soar-me um pedacinho egoísta. Fuck it!

E, no entanto, tu estavas lá. Igual, na pele e osso que sobejavam. A mesma. Eu a fechar os olhos, tu a deixares-me tê-los fechados, os dois lúcidos e conhecedores. Sabes, houve uma ou outra altura em que ia desistir e tu não deixaste. Oh, que estupidez, claro que sabes, soubeste tão bem.

O que importa, é que tenho a certeza que guardarei a nossa Vida inteira. A boa e a má. E que, para mim, não há nenhum período de Ti que queira apagar. Do meu nascimento à Tua Morte. Posso até fugir da dor, isso é certo, mas sabe que não fujo de Ti. De nenhuma de Ti. 

E sim, o Porto será campeão! Desculpa lá o mau jeito.

Entretanto, já nascem aqueles que saberão de Ti por nós. Ah pois, os que terão os Santos, se quiserem, e as Santas que lhes daremos com os primeiros biberões. Oxalá possamos ser competentes e vencer, por eles que seja, os monstros que tivermos. Conseguirmos, no mínimo, construir pessoas melhores do que nós somos. Sei lá, estar à altura do legado. 

Oh sim, sim, que bem que te fica a modéstia. Não é por isso que se te abanam menos ajórelhas, descansa.

Já te disse que a Vida não continua. Nasce para uns, renasce para outros. Todos a tatearem os espaços desconhecidos, olhos a abrirem para um Universo todo novo, as saudades do útero a marcarem o lombo, como chicotes. Em comum, o facto de ninguém ter escolhido. A vantagem dos uns é poderem berrar até alguém lhes dar colo. E mama. Hmmm, mamas. Estupendas.

Da próxima, tomo um café e um pastel de nata no Moleiro. Ou então não. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...

- Epá, boa pergunta. Devo ser Eu, de certeza. Oh Pedro! - Berra, imperativo.

- Sim, Senhor. - Solícito.

- Temos algum artefacto de medição da qualidade dos tempos?

- Tipo, um Medidor da Qualidade dos Tempos? - Pensativo.

- Pois, isso. - À beira da impaciência.

- Sim, temos. Digo, Tem.

- Boa! Eu sabia. Como lhe chamámos?

- Medidor da Qualidade dos Tempos, pois então. - Daaaah!

- Ah... Trajaí preubêr.

- Não é possível, Senhor. Tenho imensa pena, mas está na marca, para manutenção. - Baixa a cabeça, humilde.

...

A word to the wise: Children playing in the garden...  

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

2017



Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

Nós cá vamos, já lançados neste ano todo novo. Como são todos os anos, pois claro. Mesmo que este nos pareça o primeiro que é mesmo, mesmo novo. De diferente. Mas é mentira. Os que lhe estão para trás e os que lhe sucederão, também eram - serão - completamente imaculados. Como folhas limpas de um caderno também ele novo. Digamos que este tem a infeliz especificidade de ser o nosso primeiro sem Ti, daquela maneira usual, corpórea, bilateral. Não é pouco, mas é só.

Sabes, os anos passam muito depressa, quase não dou por eles. Estou mesmo convencido de que deixam de passar por volta dos 16. Ou dos 26, com boa vontade. São lapsos de tempo minúsculos, acelerados por esta mania de marcar dias. Vê lá se não tenho razão:

Ainda agora é janeiro e frio, praticamente em cima do Carnaval. Não tarda, estou a acordar na garagem - filhadaputa de mania! - prontinho para preguiçar a Quarta de Cinzas inteira - a chuva tenha permitido o desfile - direto à Quaresma.

Quando se desvanecerem os vapores etílicos, o fígado for ao lugar e mais ninguém tiver fotografias para me mostrar, de coisas de que não me lembro - sobretudo abraços a estranhos e tentativas de sedução a roseiras nos jardins - há-de ser já Sexta Santa. 

Ah sim, é evidente que o cabrito de Domingo me sabe sempre a Verão. É assim desde a escola. Vai estar Sol e o Porto vai ser campeão em maio e vamos deslizar nestas alegrias de Alma e de estômago até agosto. Ou julho que seja. Às férias. 

Ao momento em que o Phineas me desce e, sem dizer a ninguém - fechado na casa de banho, provavelmente - faço contas a tudo o que vamos fazer nos longos dias de ócio. Quase nada, esperançosamente. Só gente que se Ama e gargalhadas e cerveja gelada. 

Já se sabe que nunca é tão perfeito, mas o facto de ainda o pensar renova-me a certeza dos Amores, da Alegria e da Vodka. Eu não gosto assim tanto de cerveja.

Viste? Acabaram as férias e a energia do regresso adianta o relógio estupidamente. Quase não dou pelos reencontros de setembro, baralhado pelos fusos horários e as recordações das latitudes, escarrapachadas numa rede social qualquer. Epá, mete-se o Natal! Já?

E outro ano que também será novo. Se me garantires a mesma companhia, não me importo de o inaugurar com as mesmas lágrimas. Rio-me no inicio de 2019, pronto.

...

Olha outra coisa, estou a pensar se por aí também tomam decisões de Ano Novo e isso tudo. Tipo, ah, este ano vou assombrar aquela casa; ou este ano vou ter mais cuidado com as larvas; deixar de fumar, ou assim. Naaaa, não sejas mentirosa.

Eu espero apenas conseguir desviar-me do caminho dos meus bocados de felicidade. Quero dizer, não os impedir. Não ser eu a atravancar as passagens estreitas por onde se movem. Para que possa colecionar tantos quanto possível, ao longo destes curtos dias de 2017. Ou pelo menos, para que não me censure por ter sido eu a evitar alguns. Como decisão de Ano Novo não está mal, hein?

De resto, Querida, desejo o mesmo de sempre: Que Eles, Todos, rebentem a escala da Felicidade Possível; que ganhem novos Sonhos, por terem cumprido os que agora lhes parecem inatingíveis; e que me contem aquilo a que não assistir. 

Como "para mim"? É isto! E não é nada pouco. É isto tudo que quero para mim. Garganeiro, pois sou? Mas olha que eu sei que Tu não imaginas maior Felicidade em Ti, do que a Nossa Felicidade. 

Same here, mas bem sabemos que às vezes me distraio. Don't we all?

...

Prometi que ia deslindar esta confusão do Amor em via única, uma vez que V.Exa continua a embirrar nesse silêncio.

Ainda não cheguei lá, mas vou avançando. Por agora, tenho uma certeza grande de que Vives na Saudade que me recuso a ter. Por isso Te falo e partilho algumas das nossa conversas. 

Porque, apesar da má educação de V. Senhoria, isso me ajuda a tornar-Te uma espécie de matéria. A Voz - credo, outra! - na minha cabeça ou no meu coração. Enfim, uma coisa que existe, que É, que não invento. Porque a sinto. É quase alegre, não achas? 

Sim, continuamos a rir muito, feitos parvos. Eu e Tu.

Ainda tenho que descobrir se este Amor desprendido, pois de Ti não espero nada e Tu de mim de nada precisas, não é a verdadeira essência do teu legado. Não sei bem se faz sentido. Olha, Amo-Te na mesma, essa é que é essa.

Não sei quantos Anos Novos passarão até que não consiga já reproduzir o som da Tua voz. Se calhar mais nenhum, se calhar nunca mais. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...

- Senhor... - Com determinada cachopa pela mão.

Ele vira-se e contempla-os. Reprime um sorriso e diz, a forçar os vincos da testa:

- Esta, outra vez? O que foi agora, Pedro?

- Apanhada a fumar na casa de banho, Senhor.

Ele dá uma palmada na Bendita testa.

- Lindo serviço, minha menina. Vamos ter que conversar com a tua Encarregada de Educação...

...

Soundtrack to 2017: The light you left remains...