NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.
Saibam que este texto é longo, saibam que não é sobre bola, saibam que não tem graça nenhuma, nem fala particularmente mal de alguém. Não sei como ficará formatado nos vossos telefones, mas eu, se fosse a vocês, andava já para baixo até à imagem e lixava-me para o resto, embora fosse suposto que ela vos viesse a surpreender de alguma forma. Dentro da minha cabeça passam-se coisas. Mas lá está, fui eu que escrevi, portanto já sei o fim. Aliás, não sei. Nenhum de nós sabe...
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- Um
caminha. Pouco mais faz. Se puder imaginar uma linha reta, é provável que Um a
prossiga desde sempre. O mesmo acontece se preferir uma série de curvas e
contracurvas. O meu caro amigo só muito raramente deixa a imaginação entregue à
simplicidade. – Puxa uma longa fumaça do seu cigarro.
- Ora, seria
um paradoxo, isso da imaginação simples. Que não da simples imaginação, já se
vê. Antevejo um "mas", acertei?
- Pois
claro. Digamos que, se lhe quisermos percecionar uma direção, o que está longe
de ser líquido, Um marcha. Desfila, na minha mais sincera opinião.
- Ah, mas
isso parece soberbo. – Aproxima-se, interessado, inclinando-se para a frente na
poltrona. – Quando o diz assim, dá-lhe uma certa graça, não acha? Desfila. –
Repete de olhos fechados, a ver a palavra a formar-se no lago da sua mente. Uma
mulher a emergir da água, água ela mesma.
- Bom,
detesto conspurcar a imagem, mas não é bem um desfile gracioso, embora tenha os
seus momentos. É capaz de ser mais Ovar do que Veneza, percebe?
- Mais
divertido do que bonito?
- Mais
Carnaval do que Arte. Um caminha, marcha, anda. Mas a coreografia é caótica e
nem vale a pena começarmos a discutir a cenografia.
- Assim tão
má? – Franze um sobrolho apenas. Uma qualidade que Austin muito inveja.
- Oh, tem
dias. – Reflete por um segundo. – Pois, dias. Não vá o meu caro julgar que se
trata de um curto trajeto de horas. Ou uma corrida de minutos. Por momentos
caminha, noutros marcha, por vezes desfila. Tem alturas que corre, alturas que
dança. O cenário acompanha, isso é certo. O que não quer dizer que seja continuamente
bonito. Aliás, visto friamente, é quase sempre basto desengraçado.
- Muito
previsível. – Volta a recostar-se no seu assento almofadado, estofado com fino
tecido, comprado a retalho numa feira de segunda mão, cruzando as mãos, as suas, que são primeiras e únicas, sobre a proeminente pança.
- Agora
utilizemos a tecnologia ao dispor e aproximemos a imagem. Repara na multitude
de grilhetas? E chamo a sua atenção para esta espécie de névoa que sucede a Um.
Aqui, mesmo atrás. – Aponta com uma luzinha vermelha, fazendo círculos na tela.
- Sim, sim,
que curioso. Tenho a certeza que as suas engenhocas modernas conseguem
chegar-se ainda mais.
- Não duvide
por um instante. – Com ar de menino a mostrar um brinquedo novo, certo do
espanto que irá causar, senão inveja. – Esteja preparado.
Não
discorramos sobre quanto muda no Universo na fração indetetável, mas muito
real, de tempo que vai entre carregar num botãozinho e isso produzir algum
efeito. A nossa missão aqui, se alguma, não é essa. Apesar de dar vontade.
Resistamos ao impulso e concentremo-nos na tela. Como faz agora Mr. Deluxe, que
se levantou de um salto, contrariando a gravidade agravada pelo seu abdómen
distendido. E fica assim, as banhas ainda a abanar, de boca aberta, por um
instante. Até conseguir pronunciar:
-
Mas…mas…Austin! É toda uma parada! – O outro cruza as mãos atrás das costas e
deixa-se estar, satisfeito, a balançar sobre os seus próprios pés.
…
À frente,
Um. Aos seus tornozelos prende-se um número indeterminado, e indeterminável, de
correntes. Embora finas como capilares, todas, algumas deixam a certeza da sua
indestrutibilidade. Outras nem tanto, apesar de demonstrarem o firme propósito
de se manterem alapadas à perna de Um.
Pela frente,
nada. Só lá muito longe uma ideia ténue de propósito, muito para lá do vácuo
próximo. As bermas do suposto caminho realizam-se a cada instante, a cada
passo. Nelas se erigem as bancadas apinhadas. O movimento aqui é frenético: as
raças misturadas, os géneros múltiplos, os transeuntes - de copo na mão e
frituras em punho - visitam as bancas de merchandising
e confraternizam alegremente. Quando não estão empenhados em aplaudir ou vaiar
o desfile lá de baixo, está claro.
Porque
escolhem uma das posições, não se sabe. Nem importa. Decidem na hora, pelo que
mais lhes apetece, num momento de rara pureza da espécie. Como quem se cruza
com alguém numa carruagem de metropolitano e pensa: partia-te as trombas todas,
só não faço ideia porquê.
Logo atrás
de Um, a ala dos Eternos. Entenda-se a Eternidade como o que de facto é: o
período durante o qual existe. No caso vertente, Um. Ou os Eternos. De todas, é
a ala mais pequena, mas o batalhão mais feroz. Armados até aos dentes, prontos
– julga-se – para dar a vida e a camisa, são aqueles de quem Um se despede
todas as noites. Não obrigatoriamente por palavra, gesto ou presença. Mas
sempre. Mesmo que num fugaz lampejo da mente, instantes antes de se deixar a
pessoa de lembrar do que a mente continuará a fazer, entregue a si própria por
umas horas. Apenas.
Estes são os
que podem determinar de forma mais intensa o ritmo da marcha. Um para e puxa,
se Algum se atrasa. Algum puxa e para Um, se tem que descansar. De cada,
desprende-se toda uma nova parada que interage com a de Um, num caos de
interligações venosas e descargas elétricas mais intrincadas do que um cérebro.
De macaco.
Os figurinos
da Ala dos Eternos são muito diversificados, acompanhando frequentemente o que
veste a disposição de Um, assim como, noutro passo a seguir, impõem a Um a cor
do seu estado de Alma. O efeito é estupendo para o público: uma paleta de cores
e suas emoções, indo do lúgubre ao orgasmo em segundos, pontilhando os mesmos
momentos de alegria e dor, luxúria e amor filial e, dada a parada que agora
Austin descreve ao seu embevecido amigo, uma dose reforçada de infantilidade. E
momentos de pura razão, abotoados até ao pescoço, em colarinhos de folhos e
rendas e espartilhos pela cintura. Abaixo, uma boia com a cabeça de um pato e
fio dental, as plantas dos pés em areia muito fina. Logo a seguir uma galocha a
desbravar um oceano de lama peganhenta, o tronco nu no Verão do alpendre,
cigarro ao canto da boca e uma melodia familiar: tananananaaa tana tana tanananaaa sooo, so you think you can tell…
Segue-se o
rebanho dos zombies. Sempre de grande impacto para os espetadores, esta ala
arrasta-se atrás de Um sem muita conversa audível, para além dos seus típicos
grunhidos cinematográficos, quase por obrigação. A verdade é que deve ser muito
maçador estarem sempre a emitir aquele som arranhado da garganta. Já para não
dizer que dá cabo das cordas vocais à pessoa, mesmo que morta. Mas enfim, cada
um será para o que morre e as tradições são um tanto rígidas nesta dimensão.
Assim parece.
Para o que
importa, lá vão, braços estendidos e vísceras de fora, decompondo-se pelo
caminho, mas estranhamente intactos. Como que cristalizados num momento, nem
sempre o da Morte, nem sempre eles mesmos. Imagens que Um guarda, pessoas que
toma por suas, ainda que o tempo o vá fazendo duvidar de que seriam estas que
insiste em carregar. Pode muito bem ter-se esquecido, tê-las construído em
peças, como se fossem legos de palavras, gargalhadas, lágrimas, cheiros e tons
de voz.
Se todos são
de facto cadáveres ou se estão vivos de um ponto de vista biológico, não
podemos saber. Em alguns casos, nem Um o saberá. Importa apenas que caiam na
categoria dos que morreram para esta parada. Ou mataram o porta-estandarte, uma
delas. Por permanecerem de tanta relevância, aqui caminham, poucos metros atrás
de Um.
É muito
curioso perceber que esta é, com frequência, a zona do descanso. Como se Um se
entregasse nos braços dos mortos-vivos: uns mordem-lhe a carótida, outros
catam-lhe os longos cabelos que não possui, outros tomam-no no colo, todos o
protegem à sua falecida maneira. Não é que não seja um pouco nojento – gore, é como se diz, de forma um pouco
eufemística, talvez. Acrescentaria Austin. – mas é aparentemente retemperante,
este abandono do concreto. Ora, nem isso podemos dizer, sendo
perfeitamente realistas.
O estado não
é de transe ou de total vazio da mente – mindfulness,
apesar do paradoxo, meu caro Deluxe. – muito pelo contrário. Os mortos mortos e
os mortos vivos, todos caminhando sem parança do seu desengonçado jeito, são
bestialmente concretos. Existem e conversam com Um, afagam-lhe o antebraço, compreensivos,
ou cutucam-lhe o peito com o indicador esquelético, incentivando ou acusando,
isso não temos como descobrir. Não a esta segura distância, pelo menos. Também não seria
correto afirmar que Um repousa, tal a refrega de valentes mordidelas e alguns
encontrões. Diremos, por respeito à verdade, que se encontra. No mais profundo
da Morte, qualquer que seja o seu estado, revê os traços de si e refaz o seu
caminho. Renova-se. É certo que parece um pouco tolo, ninguém o nega.
Siga a dança
para a ala dos Frequentes. Como o nome deixa perceber, são uns que não sendo
permanentes estão muito presentes. Manifestam-se em socalcos, uns quantos
bastante profundos, traçados na pele de Um. Juntos constituem uma profusão de
tempos deveras assinalável. Mistura-se o passado e o futuro, numa orgia de
conjugações que constroem grande parte do presente. Antecedem e derivam,
inferem e deduzem, estão e já foram. De todas, são a ala mais ativa, a longa
distância. Dir-se-ia um formigueiro em plena atividade, só que sem carreiros
ordenados nem tarefas explicitas. O trânsito do Cairo, um souk sem turistas, a China se fosse transferida para o
Lichtenstein, com todos os seus pacientes chineses.
Eis aqui
chegado o primeiro carro alegórico: de baloiços suspensos em altas traves,
balançam seminuas mulheres, de generosos peitos e curvas inatacáveis, sorrindo
e acenando permanentemente à multidão. Nas laterais, poetas lançam aos pés
descalços do povo do peão rascunhos das suas obras inacabadas; intercalados por
romancistas muito improváveis que leem, aos gritos, capítulos completos das
suas novelas. A um canto, recria-se um openspace,
onde anacrónicos mangas de alpaca despacham ofícios relativos ao julgamento de
um inseto gigante. Bem no centro da viatura, Kant e Schopenhauer jogam à sueca
contra Descartes e Engels, enquanto uma profusão de gregos faz grande alarido,
aguardando a sua vez no bota-fora. Entre todos, pelo meio da Vida, crianças em
estado adulto correm atrás de uma bola. Às vezes de espelhos. Dos altifalantes,
berram i am the law; em ocasiões
sussurram, gelando o sangue do mais destemido, you’re a beast, evil one; e é frequente todos pararem quando uma
sereia toma o microfone e canta whatever
walks in my heart will walk alone. Não se sabe se é figurino ou metade
peixe, só que todos os marinheiros caem mortos.
Tossindo o
fumo negro do escape do carro à sua frente, vem a ala do Enjoo. É uma imensa
massa de indivíduos não anónimos que condicionam, das mais díspares maneiras, o
ritmo do desfile. Têm a fabulosa qualidade de liquefazer o asfalto, atrasando a
trupe. E de criar com essa pasta ondas que balançam e balançam a mole, vai e
vem, sooooobe e deeeesce, de cá para lá e para os lados e vamos de novo, do
princípio, sem quase sair do lugar. Daí o nome - concluirá vitorioso Mr. Deluxe,
entrelaçando os dedos por altura do seu mítico umbigo.
Sendo grande
a anterior, é ainda maior a seguinte. É fácil de concluir à vista desarmada,
basta olhar para a mancha de marchantes que enche todo o campo de visão, nos
seus trajes multicolores e feitios variados. Soltam foguetes e lançam
morteiros, disparam confettis e balas de canhão, festejam e matam. Um não os
conseguirá nomear, mesmo que tenha de alguns a vaga impressão de os reconhecer.
Talvez do supermercado. Todos se cruzam, por algum motivo, no caminho e lhe
atrasam ou adiantam o passo, consoante as necessidades do seu único propósito:
caminharem também eles.
Encerra-se
agora o cortejo, com grade algazarra em volta do segundo carro alegórico: um enorme, desproporcional,
imenso ponto de interrogação sobre rodas. Conduzido por um palhaço de ar um
tanto aterrador. Mais Joker do que Batatinha. O sinal de pontuação escorre
sangue, suor e lágrimas. O que seria um belo cliché. Nada como fechar a estória com uma frase feita, criando
empatia transversal com a audiência. Só que cheira a rosas brancas e flores campestres amarelas e tulipas quase negras. A ovos estrelados e a caril de camarão, em
dias marcados. Lá se vai a chave de ouro.
À medida que avança, a um tempo arrastando-se e planando quase diáfano, aumenta a comichão em pontos determinados das costas. As asas distendem-se.
…
- Que
desilusão, Austin. Mudam-se uns sinais e algumas referências e podia muito bem
ser você a desfilar. Tenho até a impressão de ter adormecido em algumas partes.
– Arenga Mr. Deluxe, bebericando de um balão de vinho tinto aquecido.
- Ora, vá-se
foder, sim, Deluxe? Mudando isto e aquilo, pode ser Um qualquer.