Mostrar mensagens com a etiqueta Poemas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poemas. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Trópico

Eu mino-te. I do. Eu do. Mino-te. Em células pequenas, nos tecidos moles, percorrendo o esqueleto, visitando-te, invadindo-te, demorando em ti, até sermos uma confusão de glóbulos corruptos, um emaranhado de capilares de esgoto, um rio de pus, liquefeitos, tu e eu. Nós. Um.

Amaldiçoas-me nas horas mortas. Quando te enrolas em volta das memórias e perscrutas o horizonte da esperança, quando choras longe de todos - que não de mim - e o teu soluço me desperta. Lentamente, como a dor, sentes? Ah, sim, eu sei que te esforças por ignorar esse fio, esse frio, de navalha quando te começa a cortar a entranha. Uma qualquer. Por vezes forço uma guinada, para que saibas que estou aqui, não te abandonei. Eu sou o Eterno. O.

A maior parte do tempo doo-te, apenas muito. Sem variações, por debaixo do opiáceo ainda mais forte, eu doo-te. Tu sabes que te dói, apesar da cada vez menos frequente e mais curta nuvem de fraco descanso. Porque já nos conhecemos, já nos misturámos, as tuas mitocôndrias traçando o mapa dos meus passeios matinais. Então, sossega, não há necessidade de mentires, como aos outros, está claro que me sentes, mesmo quando, em desespero, corres para os braços de uma morfina qualquer.

Há noites em que nos aninhamos, na nossa distância inexistente, partilhando histórias - as tuas - que te provocam risos entrecortados pelas lágrimas. Oiço-te pacientemente, tecendo a tua mortalha, apagando metodicamente cada pequena luz que reste acesa na tua Alma. Não sejamos hipócritas, é preciso dizê-lo claramente: as nossas noites não nos aproximam da morte do corpo, são passos seguros para a tomada da Alma. Até que te entregues.

Eu nasci para esse momento em que julgam que morres. E morrerás, evidentemente. Todos proclamarão a minha vitória, menos tu. Tu saberás que me morro contigo. Mas no fim dos passos do sofrimento, na entrada da Luz, no estertor, no suíço segundo em que desistes e me tomas a mão, aí repousa, brilhante e definitiva, a minha coroa. Só quando, exausto e derrotado, me ofereces a Alma em busca de clemência, me completas.

E assim seremos pela Eternidade. Um. Cada partícula da tua cinza um pedaço de mim, cada recordação de ti uma evocação minha. Um. 

Eu sou tu.

...

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Putas e finais, com Eugénio



Sou um tipo derreado. Cansadamente exausto. Naquele estado em que os indivíduos falam para a pessoa e ela lhes acena com a cabeça, enquanto reza aos Santinhos da sua devoção para que não esteja a anuir a propostas de sodomização mútua, envolvendo a equipa de râguebi da Casa de Pessoal dos Estivadores de Mogadíscio. Ainda por cima, tenho sempre azar nos sorteios.

É um fastio muito acentuado desta coisa do “ainda não ganhámos nada”, “a quantidade de pontos que ainda vamos perder”, “we’ll always have Restelo e Paços”, “é com os últimos que vamos deixar fugir esta merda”. Boa parte dos que assim me extenuam, não há uma semana lengalengavam “só a vitória no galinheiro se aceita, nenhum outro resultado pode servir, nunca, é o fim, kaput, game over”. Fartinho debujóbir. 

Portanto, se o FCP não ganhasse, era o fim. Em tendo ganho, muita cautela que estamos quase a perder. Ora fodam-se, sim?

Começo a acreditar que em consequência disto, cria-se aquele mui visto, sempre irritante e mentecapto estado de espírito da final. É tudo finais. O Setúbal em casa, uma final; o Marítimo na Madeira, ui, os penalties de uma finalissima; o Feirense, tremei tripeiros, lembrem-se do que nos tem feito esta autêntica laranja mecânica de Terras de Santa Maria. 

Depois admiram-se que os cachopos pareçam meninos de coro, acabados de chegar ao dormitório do Colégio Militar ou assim. Ai que o adversário, um colossal Vitória de Guimarães de Peseiro - lá está! - nos marcou um golo. Credo, ainda se perde o (yet another) jogo das nossas vidas. Vai ser o fim. Procedamos a borrar-nos todos, dada a trampa que somos. Quanta responsabilidade, quanto peso, quanta tragédia, tanto relógio, tanta pomba assassinada, não quero para mim tanto veneno... Fuck it, já sei que já perceberam, mas eu gosto de citar Eugénio e a casa é minha.

...

Rapazes, nada disso! Estais à frente de um Campeonato arbitrado por Bruno Paixão, João Capela, Luís Godinho, Bruno Esteves e outros camaradas igualmente dados ao sacerdócio; em que disputastes partidas como as da Feira, Moreira e Vila das Aves; em que empatastes a zero com golos ignorados, como o de Herrera, na vossa própria casa - la casa de un hombre es su castillo - contra o todo poderoso adversário; em que errastes clamorosamente como nos ditos Paços e Restelos; e em que resgatastes o lugar que vos pertence por justiça, ganhando orgulhosamente no terreno do inimigo.

Já chega de desconfianças e tremores. Que mais há a provar? É chegada - e já vem atrasada - a hora de encher os peitos e empinar o nariz. São eles quem tem a temer, os pobres Vitórias, os incautos Marítimos, os despromovidos Feirenses, pobres coitados. Abri alas, saudai o Campeão, vinde testemunhar o poder e o brilho do Primeiro! 

Trinta mil mareguianos caralhos vos enrabem se ainda não acreditam, se ainda desconfiam, se acham mesmo que são finais. As finais são apertadas e fechadas e tensas. Parecem nubentes ansiosas mas indecisas. Não é aí que estamos, senhores. Senhor. Sérgio. 

O que somos é o guerreiro cheio de cicatrizes - é certo - que emana o poder das suas múltiplas vitórias, a pele tisnada do Sol dos campos de batalha cobrindo os músculos hiperdesenvolvidos. O matulão de cabelo ao vento, instilando pavor e inveja nos adversários e arrancando suspiros e íntimas humidades às castas donzelas. É isso que sois! 

E agora o herói entra no bordel da terra e é festejado, agraciado, a sua voz incontestada, o seu ouro largado sem cuidado. Ai de quem lhe toque. Não vem para descansar, vem para foder as suas putas, mesmo as que ousarem fingir que resistem. Não são finais, não são nubentes, são o prémio da Glória que fizestes por merecer. Experientes, macias, infalíveis, perfumadas e cheias de tesão. Tomai-as!

...

As coisas quando têm que ser feitas, não há como começar logo a fazê-las. Diz que visitamos um prostíbulo esta noite...







segunda-feira, 9 de abril de 2018

O batismo na Fé ou Ver a bola com jetlag



Olha, só eu e tu agora. Esquece todas as vezes que eu te disse que era preciso fazermos diferente, que a mesma solução para todos os problemas era insuficiente, que chegaria a altura em que as montanhas se agigantariam e os ratos aprenderiam as suas lições. Sim, ignora isso tudo. Façamos de conta, ainda que por sete breves instantes, que eram devaneios de quem tinha pouco com que se ocupar.

Sei lá, como se fosse Pessoa a brincar de Caeiro por lhe sobrar do tempo que determinara para Reis. Deixa, não é importante entenderes a metáfora - que se fodam essas também! - tudo o que interessa é a essência da mensagem. Eheh, nem de propósito, A Mensagem. Ah, nada, era só eu a tergiversar de novo. A perder-me, é isso que quero dizer. Foquemo-nos: esquece!

Ficamos aqui os dois até ao fim. Eu prometo-te que caminho ao teu lado até morrermos ambos ou tu saíres em ombros. Nunca mais falaremos de alternativas e de planos diferentes para desmoronar os inimigos. Partiremos de dentes cerrados para cada batalha, no conforto daquilo que sabemos fazer. Apenas! Sem mais um pingo do que seja. Aqui esconjuramos todos os acessórios, todas as curvas que não as absolutamente necessárias e expectáveis, qualquer vislumbre de diferença. Só estarei feliz quando te ouvir gritar às tropas as ordens de sempre.

Seremos vitoriosos então, ao lombo dos rapazes que transportarão a nossa bandeira, na profunda segurança do same old same old. Avançarão de olhos fechados, cada um a conhecer a distância exata do outro, lá longe, no meio das linhas inimigas, quase já nas suas costas, na verdade, onde detonará a nossa paixão que sobrevoou todo o imenso campo de cada guerra. Se nos rechaçarem, a segunda vaga será a mais terrível, marchando sobre o sangue dos seus irmãos caídos, como antes, como antigamente, como no dia primeiro e em todos os que se seguirão de hoje em diante. De hoje, ouviste bem? Porque estou aqui a dizer-te para esqueceres!

Na verdade, acho que estou a pedir-te desculpa. Está claro que eu não tenho a culpa, toda a gente sabe disso. É como a fome no Mundo, tão fora do alcance da nossa responsabilidade. E no entanto... Também sentes o remorso, pois sentes? Por tudo aquilo que certamente poderias fazer e não farás. É esse o sentimento. Desculpo-me por tudo o que te pedi e tu, sem me ouvires, fizeste e não quero que voltes a fazer, ainda que não saibas e não te interesse o que desejo.

Não voltarás a pedir que tenham calma e paciência. Porque eles ficam ansiosos na calma e nervosos na paciência.

Não voltarás a mandar refrear a sede de sangue. Mesmo que saibamos que muitas vezes ela nos tolda a razão e dá asneira. Isso agora não interessa nada. Eles secam sem a cavalgada e o choque, perdem-se em flores como meninas no demasiado tempo que ganham, espantam-se na serenidade bucólica e deixam-se adormecer.

Não mais tentarás dar ordem ao estouro de gnus. É um estouro, deixá-lo estourar e embalar no clamor dos cascos sobre as pedras os nossos sonhos, enquanto o inimigo se vê perante a carga, tantas vezes desnorteada, dos nossos Invictos.

Pelas sete eternidades que nos faltam, farão o que lhes ensinaste. Que é tudo o que eles sabem fazer. Porque é no que os doutrinaste e é nisso, apenas, que eles acreditam. Repara, estou a converter-me por esta vida que acaba em maio. Abençoa-me, entrega-me o teu Livro sagrado e eu jurarei sobre ele, um joelho no chão, a minha lealdade ao Grande Dogma. 

Ouve, é tarde agora. Não vamos demorar-nos sobre o que podia ter sido, à volta do que potencialmente podíamos ter tido, em elipses de recursos desperdiçados ou usados fora do tempo e do lugar. O que nos resta é o que aqui nos trouxe e isso não pode ser pouco. Pelo contrário, meu caro, será tudo:

O fim da longa espera, o grito, já não de revolta mas de conquista. A queda do Mal, o triunfo cliché do Bem. É isso que será, se esqueceres e te agarrares ao que sabes. Sabemos. Apenas. Comigo, com todos. Vamos! 

...

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

The SEDCAS experiment II: A prisão em si

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

...

Um dia eu fujo. Hoje não que chove. Em dias assim, prefiro ficar monótono no alto da colina, debaixo do coberto, a deixar-me perder na folhagem da árvore grande. Muito desatento ao que se passa em redor, absorto no gesto automático da mão à boca, o fumo expelido em argolas espessas.

À copa, posso chamar-lhe mar. Não há Chefe de Turno que o possa impedir. Esta liberdade da mente é o terror de toda a ordem. Entre duas fumaças, gostava que me viesse - só por um apetite - um poema sobre o mar: As ondas desbastam o penhasco. Uma coisa assim, agreste. Uma fúria de água contra rocha negra, o Mar do Norte a rebentar em vagas de Vikings na costa da Normandia. E eu Thomas, no rumor da baía de Swansea, assaltado por uma estrofe súbita, toda arestas.

À copa, posso chamar-lhe deserto. Talvez seja o gosto amargo da beata que me seca a boca, a garganta uma nuvem de fumo e pó. Não há Senhor da Portaria que mande no meu horário, posso desertificar-me em paz. Fingir que o mescal me alucina e o deserto de Sonora se enche de mulheres nuas, a pele de um negro tão negro e brilhante que é quase azul. Arrasto-me, uma personagem de Bolaño, à beira da morte, provavelmente colecionando cadáveres e telas de obscuros pintores impressionistas da América do Sul. Acenderia outro cigarro, se o tivesse, antes de deixar cair na areia manchada de sangue o coldre e me entregar nos braços suados da miragem.

É pena que chova. Este tempo deixa-me as pernas moles e a vontade embaciada. De outro modo - uma azeda presa nos dentes - aí me veriam, serpenteando monte abaixo, pela sombra do arvoredo, até à saída. Não sei porquê, mas vou de chapéu de palha e camisa aos quadrados, solta por fora das calças, sem botões apertados. O calor que deve estar. Desço devagar, mastigando os passos, sem pressa. Não há por que a pessoa se apresse, em tendo a certeza de para onde vai e de quem a espera. Vou lento, aproveitando o Verão, mas inexorável. 

Vou para ti, para esse sabor a sal e Sol, eterna praia, férias permanentes. Não há Doutor Diretor que me roube delas.

By Sedcas | www.sedcas.pt
Iria, digo, não fosse a chuva. Chovendo, não saio. Podias vir visitar-me.



...

- Quer um cigarro, senhor Zé? - Diz-lhe, simpática, a bata branca.
- Pois claro, muito obrigado xôtôra.
- Enfermeira, senhor Zé, enfermeira. - Sorri-lhe. Ele faz um gesto com a mão: é a mesma coisa. Ela acende-lhe o cigarro.
- Quando nos despacharmos, podia fazer o favor de me levar para dentro. Esta chuva... - Hesita. - Parece que me deixa as pernas moles.




...

A prisão em si: ...esquecido, adormeceu.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

The SEDCAS experiment I: A marcha de Um

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

Saibam que este texto é longo, saibam que não é sobre bola, saibam que não tem graça nenhuma, nem fala particularmente mal de alguém. Não sei como ficará formatado nos vossos telefones, mas eu, se fosse a vocês, andava já para baixo até à imagem e lixava-me para o resto, embora fosse suposto que ela vos viesse a surpreender de alguma forma. Dentro da minha cabeça passam-se coisas. Mas lá está, fui eu que escrevi, portanto já sei o fim. Aliás, não sei. Nenhum de nós sabe...


________________________________

- Um caminha. Pouco mais faz. Se puder imaginar uma linha reta, é provável que Um a prossiga desde sempre. O mesmo acontece se preferir uma série de curvas e contracurvas. O meu caro amigo só muito raramente deixa a imaginação entregue à simplicidade. – Puxa uma longa fumaça do seu cigarro.

- Ora, seria um paradoxo, isso da imaginação simples. Que não da simples imaginação, já se vê. Antevejo um "mas", acertei?

- Pois claro. Digamos que, se lhe quisermos percecionar uma direção, o que está longe de ser líquido, Um marcha. Desfila, na minha mais sincera opinião.

- Ah, mas isso parece soberbo. – Aproxima-se, interessado, inclinando-se para a frente na poltrona. – Quando o diz assim, dá-lhe uma certa graça, não acha? Desfila. – Repete de olhos fechados, a ver a palavra a formar-se no lago da sua mente. Uma mulher a emergir da água, água ela mesma.

- Bom, detesto conspurcar a imagem, mas não é bem um desfile gracioso, embora tenha os seus momentos. É capaz de ser mais Ovar do que Veneza, percebe?

- Mais divertido do que bonito?

- Mais Carnaval do que Arte. Um caminha, marcha, anda. Mas a coreografia é caótica e nem vale a pena começarmos a discutir a cenografia.

- Assim tão má? – Franze um sobrolho apenas. Uma qualidade que Austin muito inveja.

- Oh, tem dias. – Reflete por um segundo. – Pois, dias. Não vá o meu caro julgar que se trata de um curto trajeto de horas. Ou uma corrida de minutos. Por momentos caminha, noutros marcha, por vezes desfila. Tem alturas que corre, alturas que dança. O cenário acompanha, isso é certo. O que não quer dizer que seja continuamente bonito. Aliás, visto friamente, é quase sempre basto desengraçado.

- Muito previsível. – Volta a recostar-se no seu assento almofadado, estofado com fino tecido, comprado a retalho numa feira de segunda mão, cruzando as mãos, as suas, que são primeiras e únicas, sobre a proeminente pança.

- Agora utilizemos a tecnologia ao dispor e aproximemos a imagem. Repara na multitude de grilhetas? E chamo a sua atenção para esta espécie de névoa que sucede a Um. Aqui, mesmo atrás. – Aponta com uma luzinha vermelha, fazendo círculos na tela.

- Sim, sim, que curioso. Tenho a certeza que as suas engenhocas modernas conseguem chegar-se ainda mais.

- Não duvide por um instante. – Com ar de menino a mostrar um brinquedo novo, certo do espanto que irá causar, senão inveja. – Esteja preparado.

Não discorramos sobre quanto muda no Universo na fração indetetável, mas muito real, de tempo que vai entre carregar num botãozinho e isso produzir algum efeito. A nossa missão aqui, se alguma, não é essa. Apesar de dar vontade. Resistamos ao impulso e concentremo-nos na tela. Como faz agora Mr. Deluxe, que se levantou de um salto, contrariando a gravidade agravada pelo seu abdómen distendido. E fica assim, as banhas ainda a abanar, de boca aberta, por um instante. Até conseguir pronunciar:

- Mas…mas…Austin! É toda uma parada! – O outro cruza as mãos atrás das costas e deixa-se estar, satisfeito, a balançar sobre os seus próprios pés.


À frente, Um. Aos seus tornozelos prende-se um número indeterminado, e indeterminável, de correntes. Embora finas como capilares, todas, algumas deixam a certeza da sua indestrutibilidade. Outras nem tanto, apesar de demonstrarem o firme propósito de se manterem alapadas à perna de Um.

Pela frente, nada. Só lá muito longe uma ideia ténue de propósito, muito para lá do vácuo próximo. As bermas do suposto caminho realizam-se a cada instante, a cada passo. Nelas se erigem as bancadas apinhadas. O movimento aqui é frenético: as raças misturadas, os géneros múltiplos, os transeuntes - de copo na mão e frituras em punho - visitam as bancas de merchandising e confraternizam alegremente. Quando não estão empenhados em aplaudir ou vaiar o desfile lá de baixo, está claro.

Porque escolhem uma das posições, não se sabe. Nem importa. Decidem na hora, pelo que mais lhes apetece, num momento de rara pureza da espécie. Como quem se cruza com alguém numa carruagem de metropolitano e pensa: partia-te as trombas todas, só não faço ideia porquê.

Logo atrás de Um, a ala dos Eternos. Entenda-se a Eternidade como o que de facto é: o período durante o qual existe. No caso vertente, Um. Ou os Eternos. De todas, é a ala mais pequena, mas o batalhão mais feroz. Armados até aos dentes, prontos – julga-se – para dar a vida e a camisa, são aqueles de quem Um se despede todas as noites. Não obrigatoriamente por palavra, gesto ou presença. Mas sempre. Mesmo que num fugaz lampejo da mente, instantes antes de se deixar a pessoa de lembrar do que a mente continuará a fazer, entregue a si própria por umas horas. Apenas.

Estes são os que podem determinar de forma mais intensa o ritmo da marcha. Um para e puxa, se Algum se atrasa. Algum puxa e para Um, se tem que descansar. De cada, desprende-se toda uma nova parada que interage com a de Um, num caos de interligações venosas e descargas elétricas mais intrincadas do que um cérebro. De macaco.

Os figurinos da Ala dos Eternos são muito diversificados, acompanhando frequentemente o que veste a disposição de Um, assim como, noutro passo a seguir, impõem a Um a cor do seu estado de Alma. O efeito é estupendo para o público: uma paleta de cores e suas emoções, indo do lúgubre ao orgasmo em segundos, pontilhando os mesmos momentos de alegria e dor, luxúria e amor filial e, dada a parada que agora Austin descreve ao seu embevecido amigo, uma dose reforçada de infantilidade. E momentos de pura razão, abotoados até ao pescoço, em colarinhos de folhos e rendas e espartilhos pela cintura. Abaixo, uma boia com a cabeça de um pato e fio dental, as plantas dos pés em areia muito fina. Logo a seguir uma galocha a desbravar um oceano de lama peganhenta, o tronco nu no Verão do alpendre, cigarro ao canto da boca e uma melodia familiar: tananananaaa tana tana tanananaaa sooo, so you think you can tell…

Segue-se o rebanho dos zombies. Sempre de grande impacto para os espetadores, esta ala arrasta-se atrás de Um sem muita conversa audível, para além dos seus típicos grunhidos cinematográficos, quase por obrigação. A verdade é que deve ser muito maçador estarem sempre a emitir aquele som arranhado da garganta. Já para não dizer que dá cabo das cordas vocais à pessoa, mesmo que morta. Mas enfim, cada um será para o que morre e as tradições são um tanto rígidas nesta dimensão. Assim parece.

Para o que importa, lá vão, braços estendidos e vísceras de fora, decompondo-se pelo caminho, mas estranhamente intactos. Como que cristalizados num momento, nem sempre o da Morte, nem sempre eles mesmos. Imagens que Um guarda, pessoas que toma por suas, ainda que o tempo o vá fazendo duvidar de que seriam estas que insiste em carregar. Pode muito bem ter-se esquecido, tê-las construído em peças, como se fossem legos de palavras, gargalhadas, lágrimas, cheiros e tons de voz.

Se todos são de facto cadáveres ou se estão vivos de um ponto de vista biológico, não podemos saber. Em alguns casos, nem Um o saberá. Importa apenas que caiam na categoria dos que morreram para esta parada. Ou mataram o porta-estandarte, uma delas. Por permanecerem de tanta relevância, aqui caminham, poucos metros atrás de Um.

É muito curioso perceber que esta é, com frequência, a zona do descanso. Como se Um se entregasse nos braços dos mortos-vivos: uns mordem-lhe a carótida, outros catam-lhe os longos cabelos que não possui, outros tomam-no no colo, todos o protegem à sua falecida maneira. Não é que não seja um pouco nojento – gore, é como se diz, de forma um pouco eufemística, talvez. Acrescentaria Austin. – mas é aparentemente retemperante, este abandono do concreto. Ora, nem isso podemos dizer, sendo perfeitamente realistas.

O estado não é de transe ou de total vazio da mente – mindfulness, apesar do paradoxo, meu caro Deluxe. – muito pelo contrário. Os mortos mortos e os mortos vivos, todos caminhando sem parança do seu desengonçado jeito, são bestialmente concretos. Existem e conversam com Um, afagam-lhe o antebraço, compreensivos, ou cutucam-lhe o peito com o indicador esquelético, incentivando ou acusando, isso não temos como descobrir. Não a esta segura distância, pelo menos. Também não seria correto afirmar que Um repousa, tal a refrega de valentes mordidelas e alguns encontrões. Diremos, por respeito à verdade, que se encontra. No mais profundo da Morte, qualquer que seja o seu estado, revê os traços de si e refaz o seu caminho. Renova-se. É certo que parece um pouco tolo, ninguém o nega.

Siga a dança para a ala dos Frequentes. Como o nome deixa perceber, são uns que não sendo permanentes estão muito presentes. Manifestam-se em socalcos, uns quantos bastante profundos, traçados na pele de Um. Juntos constituem uma profusão de tempos deveras assinalável. Mistura-se o passado e o futuro, numa orgia de conjugações que constroem grande parte do presente. Antecedem e derivam, inferem e deduzem, estão e já foram. De todas, são a ala mais ativa, a longa distância. Dir-se-ia um formigueiro em plena atividade, só que sem carreiros ordenados nem tarefas explicitas. O trânsito do Cairo, um souk sem turistas, a China se fosse transferida para o Lichtenstein, com todos os seus pacientes chineses.

Eis aqui chegado o primeiro carro alegórico: de baloiços suspensos em altas traves, balançam seminuas mulheres, de generosos peitos e curvas inatacáveis, sorrindo e acenando permanentemente à multidão. Nas laterais, poetas lançam aos pés descalços do povo do peão rascunhos das suas obras inacabadas; intercalados por romancistas muito improváveis que leem, aos gritos, capítulos completos das suas novelas. A um canto, recria-se um openspace, onde anacrónicos mangas de alpaca despacham ofícios relativos ao julgamento de um inseto gigante. Bem no centro da viatura, Kant e Schopenhauer jogam à sueca contra Descartes e Engels, enquanto uma profusão de gregos faz grande alarido, aguardando a sua vez no bota-fora. Entre todos, pelo meio da Vida, crianças em estado adulto correm atrás de uma bola. Às vezes de espelhos. Dos altifalantes, berram i am the law; em ocasiões sussurram, gelando o sangue do mais destemido, you’re a beast, evil one; e é frequente todos pararem quando uma sereia toma o microfone e canta whatever walks in my heart will walk alone. Não se sabe se é figurino ou metade peixe, só que todos os marinheiros caem mortos.

Tossindo o fumo negro do escape do carro à sua frente, vem a ala do Enjoo. É uma imensa massa de indivíduos não anónimos que condicionam, das mais díspares maneiras, o ritmo do desfile. Têm a fabulosa qualidade de liquefazer o asfalto, atrasando a trupe. E de criar com essa pasta ondas que balançam e balançam a mole, vai e vem, sooooobe e deeeesce, de cá para lá e para os lados e vamos de novo, do princípio, sem quase sair do lugar. Daí o nome - concluirá vitorioso Mr. Deluxe, entrelaçando os dedos por altura do seu mítico umbigo.

Sendo grande a anterior, é ainda maior a seguinte. É fácil de concluir à vista desarmada, basta olhar para a mancha de marchantes que enche todo o campo de visão, nos seus trajes multicolores e feitios variados. Soltam foguetes e lançam morteiros, disparam confettis e balas de canhão, festejam e matam. Um não os conseguirá nomear, mesmo que tenha de alguns a vaga impressão de os reconhecer. Talvez do supermercado. Todos se cruzam, por algum motivo, no caminho e lhe atrasam ou adiantam o passo, consoante as necessidades do seu único propósito: caminharem também eles.

Encerra-se agora o cortejo, com grade algazarra em volta do segundo carro alegórico: um enorme, desproporcional, imenso ponto de interrogação sobre rodas. Conduzido por um palhaço de ar um tanto aterrador. Mais Joker do que Batatinha. O sinal de pontuação escorre sangue, suor e lágrimas. O que seria um belo cliché. Nada como fechar a estória com uma frase feita, criando empatia transversal com a audiência. Só que cheira a rosas brancas e flores campestres amarelas e tulipas quase negras. A ovos estrelados e a caril de camarão, em dias marcados. Lá se vai a chave de ouro.

À medida que avança, a um tempo arrastando-se e planando quase diáfano, aumenta a comichão em pontos determinados das costas. As asas distendem-se.


By Sedcas | www.sedcas.pt



- Que desilusão, Austin. Mudam-se uns sinais e algumas referências e podia muito bem ser você a desfilar. Tenho até a impressão de ter adormecido em algumas partes. – Arenga Mr. Deluxe, bebericando de um balão de vinho tinto aquecido.



- Ora, vá-se foder, sim, Deluxe? Mudando isto e aquilo, pode ser Um qualquer.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

António João escreve-se uma carta

Caro António João,

Espero que estas linhas te encontrem bem dos pulmões e regular dos intestinos. Outrossim, desejo que a Maria Antónia mantenha a mão para aquele tempero e as carnes tão rijas quanto as Primaveras permitirem. Enfim, que em par estejam rosadinhos e felizes, quais bácoros num filme de bonecos, desses que vão começar a dar em todos os canais da televisão.

Escrevo-te porque sei que, dada essa anacrónica, ainda que crónica, embirração com tudo o que não seja papel, és o único tipo do Universo conhecido que não ouve regularmente o A Culpa é do Cavani. Resta-me pois esta maneira de te tornar ciente do que por lá se disse, ainda este fim de semana, acerca de uma desconfiança que tinha: aquela coisa da posse de bola estava nos planos, a estranhar-se enquanto se entranhava. 

Quase consigo ver o teu ar de enfado perante a facilidade desta referência ao Fernando, mas é o que se pode arranjar a esta hora da manhã. E é sempre divertido, se mostrares as linhas a alguém, pela possibilidade de acharem que é uma linha publicitária, muito antiga, de uma marca de refrigerante. Sem saberem que...é mesmo. 

Ah as saudades que vou tendo destas pequenas, e mesquinhas, conspirações literárias, ao balcão, copos de três à frente, meio cheios numa garrafa diferente da do resto dos fregueses.

A vaca fria é que ainda ontem nos fartámos, de novo, de ter a chicha. E fomos mais felizes com ela, tanto que o treinador, a empurrar a alegria do cincazero para dentro da sobriedade humilde que decidiu que seria a sua imagem de marca - se bem que a mim me pareça que não dura mais do que este ano - até veio dizer que “nos divertimos com bola”. Citei. 

O resultado desta besta negra da posse são dez golos em dois calmos jogos. Bem sabemos que não terão sido dos mais complicados da época, dados os contextos. Mas poderiam muito bem ter sido, pelo que não me soa ajuizado menosprezar a competência. Da equipa e do treinador, naturalmente. Sobretudo porque é muito bom de ver como ficar com a bola não é incompatível com a objetividade e o foco na baliza. E nem com o Marega.

Agora lembrei-me do Garret, vê tu bem. Um tipo que tem nome de leitaria, diriam os brutamontes, besuntando os seus sonhés de mostarda. E nós sorriríamos e ficaríamos quietos, bebericando dos copos grossos as nossas bebidas brancas. Absinto, se os poetas estivessem na berlinda; um bagaço caseiro, se calhasse apetecer-te discorrer sobre os “Esteiros” da vida; até uma amêndoa, ilegalmente fresquinha, se quiséssemos fazer de conta que não admiramos o Peixoto. Ao ponto de o deixar aparecer neste parágrafo, raios.

Mas foi o Garret que espreitou do meio da tempestade, na terra do choco frrrito. A pessoa a devorar a crónica de viagem e, sem dar por ela, já a parecer uma catraia pubescente, suspirando pelas desventuras da Joaninha, e rapidamente retornando ao estado das estradas do Reino, por onde dificilmente poderá circular um Carlos que salve a moça.

Tu a esperar uma bola para o Sado, a ver se o vento a trava dentro do campo e o Marega a apanha sem querer, e o passe a sair rasteiro e tenso, a morrer na bota do Hector (!) e lá vai o jogo para o outro lado, o adversário a cansar-se na nossa paciência, a recuar - oh, ainda um pouco mais - depois a subir para cortar a linha e - como assim? - bola longa nas costas do lateral. A estrada e a Joaninha. Como se fosse um rascunho - ainda um rascunho - de Garret.

Por outro lado, não temas, irrita-me não me sentir irritado. Talvez seja da quadra, mas dei por mim sem ponta de azedume. Tu dirias que não passo de um labrego iletrado, ignorantemente alegre, enquanto as roldanas do Mundo se movem para o inevitável fim. E brindaríamos a Nostradamus, com um cálice de Porto, e tu procurarias a tua cópia de bolso do “Livro de São Cipriano” e eu brandiria uma velha Bíblia, gasta e anotada e cheia de rabiscos e resultados do Totobola.

Isso não muda nada, nunca mudou. Continuo, e continuaria, com esta sensação de nada a dizer. Como se estivesse a observar Elliot a começar uma folha limpa com how many loved e a riscar, sem saber que lá voltará. Um velho a ver um jovem a errar ligeiramente, por acertar um pouco antes do tempo, seguro de que não demorará muito até gritar a plenos pulmões: Do not go gentle into that good night. Viste? De Elliot a Thomas sem sequer pestanejar. É um dia de absinto, meu caro António João.

Tal a bonomia que nem do André me queixo. Por lá esteve, qual palmito. É certo que não se pode contar com ele para dar gosto ao prato, mas liga com qualquer molho. 

Ora, já cá faltavam as receitas. Não tardaria até estares a imitar a Modesto ou o Herman ou a fazer de Chefe Silva na sua versão Sueca. Amarretada. Por falar em gente rude apreciadora de belas comezainas, abriríamos uma garrafa de Soalheiro e faríamos questão de brindar em copos adequados.

Somos sempre tantos e apenas estes dois, sejas tu José ou Maria, quando o tempo se proporciona e o assunto - que era mesmo qual? - se acomoda à pena. Hoje foste António , ainda por cima João, não fosse ficar menos evidente a multiplicidade. Por teres sido esse é que te minto e te digo que escrevi, quando na verdade digitei. Se te revelo a farsa nestas últimas palavras, é na esperança que me venhas pedir contas. Com o nome que quiseres.

Recebe um forte abraço deste que te estima,

António João

...



segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Verdade e aspirina para o louco na montanha

Foto: publicdomainq.net

Para a malta que, como eu, viveu pelo menos uma parte da nossa Golden Age em Lisboa, este discurso do "todos lhejábrem as pernas, é uma aflição", tem aquele piquinho a lampião que provoca urticária. No fim do dia, quero lá saber se os pastéis se deixam comer e se apressam, eles próprios, a cobrirem-se de canela para terem um gostinho mais exótico, a fazer lembrar as naus que partiam ali mesmo em frente. Se queremos acreditar que o Domingos pactua com o jeitinho aos lampiões, tudo bem. Naturalmente, espero que estejam errados, porque de outra forma o futebol não teria interesse nenhum.

Mas por favor não me venham com o estafado "lutar com as mesmas armas". Isso não! Se estas são as armas dos outros - o Vitória fez o jeito aos lagartos? - a última coisa que quero é vencer por utilizá-las melhor do que eles. Sorry, count me out.

Pieguinhas por pieguinhas, vou mais pelo nosso Machado: O fosso é provavelmente maior. E nota-se mais nesta fase, onde os bons jogadores conseguem disfarçar qualquer coisa da natural falta de ritmo e mecanização dos sistemas. Creio que se continuará a notar pelo Campeonato fora, porque há equipas mesmo fraquinhas. Olha, o Tondela é uma. Mesmo que não tenha levado cincazero. Pois.

Já se sabe, ontem estava calor. E o adversário não deu pica. Quando estiver o campo bastante enlameado e jogarmos contra o Real Madrid é que vai ser bom. No fundo, estamos apenas a auto-justificar o facto de, aparentemente, os outros terem entretido os seus deprimentes apaniguados melhor do que os nossos a nós. Pá, lixem-se para isso, contamos nove pontinhos que era o minimo exigível. Também era o máximo, pois que mais pontos não poderíamos somar neste momento. Só não vale a pena andar à volta das questões: Há um Mar Azul e há uma confiança renovada e bem precisávamos de ambos. Sustentam-se no excelente futebol da equipa? Nop! Talvez tenham raiz no que se vislumbra ser o potencial, a intenção, o ponto de chegada. E isso não tem nada de mal, porque é mesmo no inicio que estamos. Não vamos é fazer de conta. O treinador, por exemplo, parece que não faz. E não tem gostado assim muito do que tem visto. O que não é possível é esquecer quem é que treina. Olha, eu não sou, fica a pista.

De resto, 3 jogos e nenhum golo sofrido - mas aquela dupla de centrais ainda não está ao nível do ano passado, let alone o trabalho defensivo do meio-campo. 3 jogos e 8 golos marcados - mas precisamos de elevar muito o grau de eficácia, já para não falar na última decisão. Isto é, coisas a melhorar, como seria expectável nesta fase, mas está tudo a correr bem, de momento. O que contrasta claramente com os estados de espírito somojusmelhoresdoMundo e deixalárranjarumadesculpakejáfomos.

Os adversários estão tão fortes, um, e mais fortes, outro, pelo que se vê deste inicio de campeonato. E nós também não estamos nada mal e, pelos sinais, vamos ficar melhores. Porque haveríamos de estar desde já a subir cabisbaixos a um cadafalso, enquanto murmuramos que não tivemos reforços, ai se a cavalaria tem chegado a tempo, pobre de mim, pobres de nós, pobre do Sérgio que não faz milagres.

Isto depois de termos todos achado lindamente que se olhasse para o que cá estava e de muitos terem, inclusivamente, dado hossanas pela uefeira troika, que nos poria no bom caminho. Poijé, ninguém está mesmo disposto a perder a Vida para salvar o Mundo, que é como quem diz, ninguém está pronto para ficar mais um ano à seca. Eu cá não estou! Em minha defesa o facto de nunca me terem agradado castigos, de nunca ter defendido - e o que já levei na cabeça por isso - equipas "da formação", anos sabáticos, passos atrás e mais uma série de balelas que caem por terra aos primeiros cincazero. Dojôtros.

Pode ser impressão minha, mas noto os narizes a começarem a torcer-se um bocadinho e acho que é muito cedo para isso. Como era demasiado cedo para os hácanoskenãoviaoPuortassim. Não é agora que até os comemos, carago. Foi sempre! É para isso que cá estamos, para mais nada.

...

Portanto, com os pés fincados na areia do deserto, que a branca e fina já se me esvaiu num fuso horário outro, é que devemos olhar para o que mais nos importa: Nós.

Se ficou claro desde o primeiro pontapé que Sérgio Conceição decidiu preparar uma equipa para atacar o Campeonato, dando muitos minutos aos mesmos e poucos aos outros, é natural que sobrem algumas dúvidas quanto às alternativas. Porque as vimos ainda muito pouco, pré-época incluída. Com esta reserva mental presente, não me é, ainda assim, possível escapar a algumas preocupações:

O que acontece quando Oliver não jogar? O mesmo que acontece ao nosso jogo quando não é ele que constrói? Credo, seria uma desgraça. Temos uma verdadeira opção ao nosso 10, que é 8 - vénia ao grande Jorge Vassalo - faz as vezes de 6 de vez em quando, recupera bolas à frente como se fosse avançado e dá uma perninha nas alas? O Lucas Lima da vez continua referenciado, certo?

A diferença entre um Brahimi ao pé coxinho e Brahimi nenhum é a que vai da primeira para a segunda parte de ontem? Credo!

Quando um Ricardo se constipa, temos mesmo que jogar com 10 mais o Jesus? Ou o Hernâni? O pior é que eu ontem vi o Tottenham e eles precisam tanto de um defesa direito... Já Álvaro de Campos se zangava com a vida, à conta das constipações. Especulo, pois claro. Nada que não se resolva com verdade e aspirina.

Se o Rui não serve sequer para aquecer o banco, porque não o deixam jogar na B? Ou é ele que não quer? Percebo que o Pedro não pode fazer o que se pede a um Marega - o Moussa merece estar cá! - ou a Abou e Soares. E isso é o que o treinador quer dos seus avançados, pelo que este não cabe. Admito que, na ausência, preocupante, de um modelo alternativo, Sérgio Conceição prefira meter o Otávio a segundo avançado. Admito, não concordo e tenho dificuldade em compreender. Mas o que, enquanto sócio desta coisa do FCP, gostava de saber, é qual é a ideia para o catraio? Empréstimo com opção de compra de 15 milhões? Naaa, isso não aconteceria. Ai, espera...

São questões até ver sem resposta. Há tempo para que tudo fique claro e se encaixe, oxalá que na perfeição. A partir do próximo jogo, caros todos, contam comigo na bancada. Só por aí já será uma melhoria muito significativa, está claro. Quero lá saber que achem que sou meio maluco.

...

Descobri, correndo riscos vários, que os Jorges planearam para hoje uma conversinha intima, a dois. Diz que mete velas e espumante de qualidade duvidosa e morangos mergulhados em chocolate e isso tudo. Pá, se mete espumante, também quero! Isso da qualidade passa-me lá para a décima quinta flute. Vai-se a ver, ainda lhes estrago o arranjinho e lá fica a baderna do costume. Threesome, portanto. Mas o que importa mesmo, mesmo, mesmo, é que, a dois ou a três, hoje teremos um novo A Culpa é do Cavani. Oh yeah!

...

Calou-se a gargalhada das gargalhadas. Morreu o homem que nunca se esqueceu que não era mais que um bobo. E por isso foi melhor que tantos outros. Obrigado por tantas tardes felizes. Smorgasbord.

...  

Soundtrack to fools: Hills.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Disparates meus no Indico



Será um hábito um tanto estranho, este de me deixar estar quieto - mais pareço um daqueles insetos que conseguem ficar iguais aos ramos das árvores - envolto no ecossistema, calado à escuta de mim, enquanto dura a cimeira com o meu cérebro, na qual decidiremos cinicamente se poderíamos viver aqui. Eu e ele, se mais ninguém. Aqui é onde calhar aterrarmos ou desembarcarmos, uma estação de comboios de vez em quando, um terminal rodoviário mais raramente: na neblina Londrina, onde nos sentimos tão desembaraçados; no tédio das planas avenidas de Copenhaga, com o tráfego a empurrar-nos para Sul; funanando na Morabeza da Mãe, infinitamente mais pequena do que o que nos tinham ensinado; ou simplesmente aqui, desta vez, perdendo o olhar no Oceano que já antes nos viu partir.

Assim, brevemente sossegados, eu e o meu cérebro conversamos. Concluímos umas vezes que sim, outras que não e quase sempre deliberamos que precisaremos de voltar para fazer boas escolhas. Mas desta vez somos ambos silenciados e é dos poros que brota, súbito, o reconhecimento do cheiro das cadeiras nos alpendres ou simplesmente à frente das portas escancaradas, ao fresco possível. Abertas igualmente as janelas que a casa se quer arejada, como a roupa que seca nas cordas do quintal, em redor dos meninos acocorados num jogo qualquer. Como se nada fosse mais natural que o telhado de zinco e as paredes de tábuas velhas da cantina do monhé, onde se guardam, suando, as maravilhas do Mundo ou as lentilhas que cozinham devagar no molho de caril. A terra ocre entre os dedos dos pés, rolando pneus com paus - um pouco de água por dentro - em corrida pelos buracos do alcatrão colonial.

Ou então urbanizo modernaço, os tapumes no mesmo zinco mas os reclames já iluminados e os olhos cansados de fumo e tráfego, repousando nos uniformes imaculados das meninas do Basilica College e sua herança de chá das cinco. Os seus maridos to be jogam críquete no campus, longe dos tuk tuk que abrem caminho à buzinadela pela vida. Um estranho "sim, eu sei" que me aflora os lábios perante as sombrinhas e as roupas simples e feias. À esquerda será a Estação, digo eu que nunca aqui vim para mim que nunca cá estive. E não era. Só um pouco mais adiante.

Ah, casa. A Avó que não saiba! Apressar-se-ia a retocar o pó-de-arroz, embranquecendo as faces, ao contrário dos banianos, esses, eles, nós!, escarrapachados nas fotografias de antanho. Gritaria ordens para se distrair: É preciso fazer arroz branco para o menino. Ele não come as suas lentilhas sem arroz branco. Nem outro caril que seja.

Será este Oceano, Senhor Knopfli, que nos predispõe ao disparate? Ao cinismo de arrumar, muito direitas lado a lado, as sapatilhas NIKE e sair chinelando por aí, ao sabor do que o meu IPHONE quiser fotografar: estas tartarugas que vieram comer à praia, um plástico cheio de mandioca estendido no chão, aquela velhota a catanar cocos na berma da estrada. E adormeço no balanço do coral.


Sonho com a ratazana de Natal de Herr Grass. Ri-se, como sempre, da estupidez dos homens. Este que dorme à sombra do tsunami que levou cinquenta – mil – quão diferente poderá ser dos outros, acordados, poderosos, que tão alegremente vão praticando as suas estupidezes? Dobra o riso e declara:

- Rio-me sem parar desde 1986 e não envelheci um dia. Até o pobre do Günter já enterrei e parece que lá fora nada mudou. Só me doem um pouco os maxilares. E a barriga.

Em rodapé da notícia do Fim do Mundo, passam os resultados da bola. A ratazana estranha:

- Ris tu também? Porventura pensas estar a salvo, preso em órbita numa cadeira de rodas, achas? Nem ratazana és, porque te ris?

Ah, casa. O meu Dragão rejubilando na vitória. Duplicada, que são já duas. Avisai o Avô imediatamente. Ele saberá como fazer para que se adie o Fim do Mundo. Talvez saia para a caça grossa com os estúpidos e os dê de comer aos leões. Suspenda-se o cogumelo nuclear, a morte Amazónica, o degelo da calota, mesmo que seja só até maio. Deixai sair a nossa Nação para a Avenida, sambando como se fosse Carnaval em Ovar. E acordo rodeado de pequenos tubarões de pontas negras.


Faltam-me dados concretos devido a dificuldades no wifi, mas afigura-se muito possível que se tenha dado o Apocalipse. Não encontro melhor explicação para o facto de me ter adormecido numa ilha tão familiar, mesmo que nunca lá tivesse estado, e acordado em pleno Paraíso. Ao meu lado, o Anjo Pecador de sempre. É neste estado de semiconsciência pós-Apocalíptica que me cai o corpo na água turquesa. Tépida. Reconheço o sabor deste Mar, pese embora o toque seja diferente. Seguro-me nas pernas, os pés firmes sobre o coral morto.

Estendido na areia, sem toalha, envergando um modesto exemplar de calções de banho aos quadrados, tipicamente de meio do século passado, o Senhor Knopfli brinca com uma ratazana de esgoto. É natural que, efeito das chuvas ácidas do Dia Seguinte ou das cinzas radioativas, o meu falecido cérebro sofra de intermitências. No lugar dos coqueiros que se estendem quase até à água, surge em algumas frames a fachada do Polana. Uma garça fixa o espelho azul claro da piscina, presa do jantar das suas crias. Aceno ao poeta:

- Hey, Rui, terá se acabado o Mundo?

A ratazana segreda-lhe ao ouvido. Está claro que as ratazanas - ainda para mais esta, de origem e fiabilidade Alemã – sabem de coisas. Os bigodes fazem cócegas na face, colando um sorriso maningue parvo ao seu interlocutor. Ele responde-me a esfregar a cara com uma mão, a outra içando o copo de Laurentina gelada:


Chama-se Responsabilidade o avião que me roubará de novo ao Indico. Até quando?

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Os pinheiros do caminho (com Interlúdio), as cerejas e Sim, nós sabemos



Shhh, escutem. Apurem ojóvidos, atentamente, em silêncio absoluto. Ouvem?

Pois, nem eu. Nada.

Passaram três semanas e não acontece a ponta de um corno. Zero, bola. Apesar de praticamente toda a bluegosfera andar a berrar os factos; a analisar, com brilhantismo, as causas e as consequências; e a bradar pelo que seria a justa cobertura mediática. Ninguém liga nenhuma.

Estão envolvidos altos dirigentes da Liga de Clubes, da Federação Portuguesa de Futebol, assessores jurídicos, funcionários, colaboradores apaineleirados, árbitros, observadores e putas. Toda a gente que conta, portanto. Ainda assim - escutem - nem uma agulha parece bulir na quieta melancolia dos pinheiros do caminho. Os que não arderam, está claro.

Não duvidem, entre tragédia e a Seleção no gulag, o tempo passa e, não tarda, a bola estará a pinchar e a paciência - mesmo a nossa - ficará tomada pelo que mais nos importa: O jogo. Então, ter-se-à esgotado, na espuma dos dias, a oportunidade. E as portas para a condenação, certamente rápida e exemplar, do mensageiro, abrir-se-ão de par em par. Aí sim, teremos primeiras páginas e investigação jornalística a sério. Viva Portugal!

Aiai, meus meninos, não dissemos já que não se pode vaporizar? Vamoláversaprendem, raisparta. Dediquem-se a criticar o Ronaldo e a Seleção, que ganham, mas não pintam quadros de uma beleza rara. Como se fosse hábito que ganhássemos. Deixai o senhor Gomes sossegado, a banhos gelados com as suas matrioskas, sabemos bem o que ele anda a fazer, acreditem. Em último caso, temos aqui mais com que vos entreter. Duzentos por uma, quatrocentos por duas, nas calminhas, sem pressa nenhuma.

[ Interlúdio: Regras básicas de negociação

Para quem anda déjanos à frente do seu tempo, esta malta negoceia mal. Talvez não conheçam os fundamentos da economia de escala, não sei. Mas até nas cerejas a coisa funciona melhor. Vejamos, um quilo de cereja bem boa, daquelas redondamente grandes e escuras, vende-se por uns trêjeuros, na berma da estrada. Se forem comprar dois quilos, nunca paguem mais de cinco euritos. Entra porojólhos adentro, certo?

Ora, quando se trata de gajas, bem boas que sejam, como as cerejas, a coisa não é muito diferente, senhores. Se uma são duzentos, duas não são mais do que trezentos. Trezentojicinquenta, vá. 

Isto presumindo que se trata de um aluguer de curta duração. Se for uma aquisição de caráter permanente, já se percebe que não haja um grande desconto inicial, uma vez que o benefício do comprador se verificará pelas economias de escala. 

Desde logo, onde come uma, comem duas, pelo que já se poupa em víveres. Depois, porque na questão - sempre importante - da higiene, também haverá poupanças assinaláveis. Não se concebe que tomem banho à vez, por exemplo. É ambas para dentro da banheira, a esfregarem-se uma à outra, e a conta da água a encher de alegria o feliz proprietário. 

Mesmo no que toca ao guarda-roupa, aparentemente uma despesa significativa neste tipo de negociata, a coisa não tem que ser dramática. Para começar, dispensa-se a roupa interior, que não serve para nada. Bastam pois duas toilletes, usadas à vez por cada exemplar. Haja é o cuidado de escolher a fruta normalizada. Isto é, de tamanho semelhante, pois claro.

Enfim, até quando chega à fruta, esta malta parece que tem bolsos sem fundo. Gastam o que for preciso, mesmo que não seja. Só pró style, mano. ]

Shhh, escutam? Isso mesmo, nada.

São gente bem ensaiada, estes mânfios. Melhores que o Copperfield e o Luís de Matos na mesma banheira. Conseguem pôr seis milhões - ou sessenta, como preferirem - a olharem para o sistema montanhoso Montejunto/Estrela e a verem uma ninhada de hamsters amorosos.

Well, cá pra mim, uma ratazana é sempre uma ratazana. Seja lá qual for o modelo em que venha a bicha.

...

No entanto, não sei se por distração, se por ser inconveniente por algum motivo, há um lado desta pessegada que tenho visto pouco analisado. Como inconveniente é a modos que o meu nome do meio - Fulano I. Silva, digamos - partilho convosco o que me parece um ângulo da mesma importância que todos os outros. Se não maior, até.

A cortar os silêncios, temos tido as ameaças de processos por difamação, crime informático, mau estacionamento e por usar as mesmas meias dois dias seguidos. Isto é, lá estão os grunhos do Norte a conspurcar a Pátria Amada. Ainda por cima agora, que o nosso futebol é o País das Maravilhas, os nossos soldados em missão pelas Terras dos Sovietes, a economia a crescer, o desemprego a diminuir, o incêndio dominado.

Pois seja, se somos nós os mafiosos, não tenhamos pejo em retirar os mafiosos benefícios de sermos os maus da fita. Ma che cosa si può fare?

Assim, o que temos para dizer, caros senhores, é que nós sabemos.

Sim, senhor Presidente que nos ama eternamente, nós lemos as mensagens. Sim, senhores observadores impolutos, nós percebemos como se cozinham as notas e onde e com que chefes gourmet. Sim, senhores árbitros, nós sabemos onde mora a Valdineide e em que dias passam lá por casa.

Não estamos aqui para chantagear ninguém, Deusmalivre, por quem sois - nós pelo Dragão - nada disso. Fica tudinho aqui guardado e até vamos aplaudir o Vice-Ministro Costa na tribuna do verdadeiro Parlamento Nacional.

Mas somos gente, com as mesmas fraquezas de todas as pessoas. Gostamos do nosso carinho. É por isso que nos podemos irritar, se continuarmos a ser tratados como a Gata Borralheira deste vosso conto de ninar. Vá, todos conhecem o fim da história da Gata Borralheira. Aquela pá, que vivia com duas irmãs que cobravam a duzentos uma e a quatrocentos as duas.

Sim, nós sabemos o que andam a fazer há uma série de Verões. Be very afraid...

...

Passaram três semanas e está tudo na mesma. Só que não. Nem lá perto, bitches.

...


Soundtrack to cherries: Gimme some pie.

terça-feira, 20 de junho de 2017

As estrofes da culpa

A culpa é do Senhor Mário
Que queria ter morrido.
Ele inteiro feito uma pedra só, de carvão ardido.
A culpa é do Senhor Guarda
Que devia ter avisado.
A guarda sabe de coisas que a nós nunca tinham lembrado.
A culpa é da Senhora Judite
Que parece tresloucada.
O horror mesmo ao lado e ela a sentir-se acompanhada.
A culpa é do Senhor Bombeiro
E do seu tanque sem água.
Foi-se tudo e uma sachola, sobra, incandescente, essa mágoa.
A culpa é do Senhor Agricultor
Que plantou eucaliptos na serra.
Maldito que seca, infesta, estoira como bombas na guerra.
A culpa é do Senhor Ministro
Que vem de fato e camisa aberta.
Venha, venha ver com os seus olhos esta bela merda.
A culpa é do Senhor Mirone
Mais da puta que o parisse.
Tanto que podia arder em nosso lugar quem só assistisse.

A culpa é do Senhor...
Oh, Dele, pronto, deixemos assim.
Querendo, ri dos sonhos e escreve a fogo um triste fim.

Mas a culpa não é minha!
Nem o permite a pouca humildade.
O centro do imenso Tudo, o fito de todo o Universo: isto a Humanidade.

O frágil, finito, desarmado Homem
Posto perante a Verdade.
Agacha-se, treme, encolhe. Arde.

Aprendo?

...

We are what we are...





domingo, 6 de novembro de 2016

A verdadeira história da Morte de Figueiredo


Para um propósito meramente informativo, "Morreu Figueiredo" seria suficiente. Encerrava-se o assunto em meras duas palavras, um verbo afeta o substantivo, dá-se duas sacudidelas de mãos e está feito. Não é como se houvesse muito mais para informar, acerca da morte de Figueiredo ou de outra qualquer de qualquer outro apelido. Morreu, já está.


Muito ao jeito daquele senhor, supremo somítico, que, posto perante o pagamento mínimo de cinco palavras para um anuncio na secção de necrologia, optou por "Morreu Maria. Vendo Opel Corsa". Fechada uma vida, é enorme a quantidade de coisas que passam a ser inúteis. A começar por um Opel Corsa a mais.



Acontece que, não por escolha, vim a ter acesso a dados relevantes quanto ao acaso em apreço. São detalhes de uma ordem de estranheza tal, fenómenos tão improváveis, que não me resta outra alternativa que não contar. Partilhar um laivo de loucura, poderá ser?


...


A Morte tinha claro que estava atrasada. Sabia também que os atrasos fazem parte da sua rotina, ninguém lhos aponta, ninguém lhos cobra. Compensa-os com uns quantos adiantamentos. Mas agora, via-se perante o esgotar de toda a tolerância. Era mais que tempo, Figueiredo devia morrer.


Foi por isso que, mal pôs os olhos no relógio, junto à máquina de café, alertada pelo primeiro e único "sabes, P.inho, a mana não dura muito mais" - nas raras lágrimas que não soube evitar em público - saiu disparada através das paredes, em vez de tomar, como era seu hábito, os passos tranquilos do corredor. 


Gostava de percorrer devagar aquele corredor, espreitando distraída para dentro das salas, imaginando as auxiliares a vestirem as suas batas, ouvindo o tom da tosse dos pacientes internados, sentido-lhes o pulso a enfraquecer, anotando, de vez em quando, números de cama. 

Uma enfermeira atrasada - como a Morte de Figueiredo - sentiu um estranho arrepio na nuca ao deixar cair a bata sobre os seios nus; uma senhora acamada jurou ouvir a sua falecida mãe chamá-la para comer a sopa; instrumentos de medição avariaram inexplicavelmente; duas janelas bateram e a porta de emergência, ao fundo do corredor, abriu-se de par em par. Parecia que andava o Diabo à solta.


A Morte cruzou tão rapidamente a sala sete que nem o senhor da cama 25 morreu. Oh, paciência, há tempo para ele. Quando atravessou essa última parede, já afagando o alivio da missão quase cumprida, deu, uma vez mais, de caras com uma roda de gente. E as suas gargalhadas. As suas piadas negras e parvas. O cuidado com que alguém remexia a pasta que era suposto ser refeição. Enfim, a forma como, em torno de um leito de Morte, os discípulos bebiam ainda a água do Senhor. Da Senhora.


Já outras vezes a Morte se deixara atrasar por estas coisas. Mais fascinada que condoída. Hoje, teria que ser diferente, estilhaçados os prazos, pulverizadas todas as médias de sobrevida. Ah não, hoje fecharia o seu coração negro e seguiria em frente. Com as mãos a taparem os ouvidos, se fosse preciso. Só que se esqueceu dos olhos. 


Foi assim, determinada mas impreparada, que a Morte deu de olhar no olhar de Figueiredo. E especou. Ali ficou, meio gelada, meio paralisada. Presa de movimentos, pronto. 


A Morte passou a viver na parede da sala de Figueiredo. Quase paralela ao relógio branco, à esquerda do campo de visão de quem moresse na cama 28.

Quando todos saíam, as duas conversavam. Negociavam timmings, mediam cansaços, trocavam receitas, contavam coscuvilhices do pessoal. Espantosamente, a Morte aprendeu a rir e a gargalhar. E jurava que nem em dias de Vida se tinha sentido tão bem. Até que uma dor as vinha lembrar, retirá-las do seu descansado desfiar de minutos. E de memórias.


Todos os dias Figueiredo se entregava um pouco mais à sua Morte. Todos os dias lhe pedia mais outro, apenas. A Morte, lá do seu lugar na parede, nunca lhe disse que não. Até que voltou a doer muito. Demais. E Figueiredo estava demasiado cansada para imaginar, sequer, que lhe pudesse voltar a doer assim.


Enfermeiros puseram gente na rua, auxiliares trocaram-lhe a bata ensopada em suor e dor. Encontraram, sabe-se lá como - ou porquê - um intervalo de calma naquela guinada atroz. Deixaram Figueiredo para dormir. Ela olhou para a parede à procura de conforto e companhia. Disse para a Morte:


- Achas que eles entendem? Achas que eles já entenderam? Se me deixar descansar - tão exausta que estou - eles vão perceber, em tempo, que cada um é um pedaço de mim? Que juntos me revivem e, cada um por si, serão o pedaço de mim que me deixaram entregar-lhes? Poderei acreditar que se gostam para lá do Amor que me têm? Queria ter feito mais, sempre.


A Morte abriu o esgar que lhe faz as vezes de sorriso. Deu um passo em frente, por fim, e estendeu-lhe a mão. Disse:


- Não vai doer mais.


Não doeu.



...  


Figueiredo e a Morte balançavam os pés descalços, do topo do Penedo do Guincho, enquanto a matilha se despedia da sua Alfa. São vãs as despedidas de quem nunca parte. A Morte levou Figueiredo, mas nenhum destes, na areia, se convenceu a deixá-la morrer.

No pequeno rochedo, rodeado já de água, sobra um dos cinco. Olha para a praia da mesma perspetiva exata de Figueiredo. Entre aqueles, em roda, com as suas fraquezas e defeitos, cheios de um Amor que parece sem destinatário, mas perto, a distâncias que nunca foram tão curtas, está quem a Morte levou. 


Ele esfrega primeiro os olhos, certo de que as noites por dormir e a força para não chorar o fazem ver coisas. Depois procura a onda que o deixará sair da pequena rocha. Olha de novo. Sim, de todos eles, da sua soma, emerge de novo Figueiredo. 


Upa, ai está ela, a aberta seca para regressar à praia. Ele pensa:

- És mesmo parva, tinha que ser eu, pois era?


- Era um abraço, estúpido. - Responde-lhe no seu tom eternamente doce.



...


A Morte e Figueiredo balançam os pés descalços do topo do Penedo do Guincho, enquanto pescadores estranham as cinco rosas brancas plantadas na areia. 


Voltarão, juntas ou à vez, a este lugar, sempre que lhes der na gana. E haverá flores na areia.



...


A Morte viveu nos corredores do Hospital Pulido Valente, em Lisboa, por mais de um ano. Passeou ao nosso lado e tomou café na nossa mesa. A Morte não é rancorosa, nem vingativa, mas é velha e sabe coisas. 


A Morte cheira a cancro e uma pessoa habitua-se. Aprendeu a gostar de sambas simples e alegres do Martinho da Vila e a despejar demasiados pacotes de açucar nos abatanados. A Morte gosta de sopa de peixe e de caril de camarão.

A Morte assistiu às consultas enfadadas e à resignação do Dr. Direndra. Aquele que era o General designado do nosso exército, estava derrotado à partida. Tão farto de ter que fazer de conta que...nunca fez.


A Morte sorriu com a bem-disposta esperança do Dr. Pedro Barradas e o seu bigode farfalhudo. Anotou no seu caderninho o carinho do seu tom e a sua capacidade para...fazer de conta. Com convicção.

Da mesma forma que recorda as explicações simples e cheias de luz - e os e-mails terroristas - do Dr. Nuno Gil, na Fundação Champalimaud, em Lisboa. Até à ausência de resposta, por extravio ou por a pergunta já não valer o esforço de responder.

A Morte conhece de cor os números de segurança social dos elementos de determinada equipa multidisciplinar, que permitiu que uma paciente vivesse um mês com um braço partido, sem nunca ter procurado a origem a da dor. De igual modo, regozijou-se com todos eles pelos resultados do primeiro ataque, frontal e decidido. Ainda o General era outro.

A Morte ficou tão chocada perante a frieza da Dra. Vanda, que não a matou. Nunca antes tinha visto alguém capaz de olhar um filho nos olhos e dizer-lhe:

- Mas oiça, ninguém vai salvar a vida à sua mãe, pois não? Vai dai, desinfete lá do caminho que eu tenho mais o que fazer. - Se não foram estas as palavras, foi isto que os nossos corações ouviram. O da Morte também.

A Morte deu um chuto na Dra. Ana Sofia, quando esta teve o desplante de dizer, em passo de corrida, a um irmão:

- Só estou aqui para urgências. Não me vai dizer que a sua irmã é uma urgência, pois não? O Dr. Pedro não tem falado convosco? Sabe em que estado está, não sabe? Agora desinfete lá do caminho que eu tenho mais o que fazer. - Quem não sabia do estado era a própria Ana Sofia, do fundo dos seus óculos fora de moda.

Mas também registou a sua humildade ao desculpar-se, perante uma sala de gente capaz de a fazer em picadinho.

A Morte orgulhou-se da competência e disponibilidade do Enfermeiro Ricardo. E de um outro, alto e magrinho, cujo nome lhe escapou. Assim como não esquecerá a arrogância de outro ainda, cuja identidade sexual é, no mínimo, dúbia.

A Morte enterneceu-se nos olhos doces e bonitos da Enfermeira Ana, quando dizia a uma roda de gente desfeita:

- Fiz o que gostaria que fizessem por mim. - É tudo o que vos pedimos, caros senhores.

A Morte não discute a competência, nem as condições de trabalho. A Morte compreende tudo e não esquece nada.

A Morte é Arya Stark. E todos nós somos a sua lista.


...


Morreu Figueiredo. We've all been victims of a crime.


...

Com uma vénia a Vinicius de Moraes - outro imortal - e à Última viagem de Jayme Ovalle.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Obituário



A morte é uma tipa eternamente inconveniente. Nunca chega no tempo certo. Não há noticia de alguém, alguma vez, ter dito, ou pensado: Ena pá, olha a Morte. Mesmo na horinha, sua marota. Ainda bem que apareceste. 

Mesmo quando se trata do falecimento de outros, que não do próprio, dificilmente se imagina o advento no momento oportuno. Ou gostamos do proximamente desaparecido - e a sua morte é sempre prematura; ou detestamos o coirão prestes a bater a bota - e, mais educação menos religião, em algum minuto pensamos com os nossos botões: Já vais tarde, seu coirão. Precisamente.

Digamos que, de um ponto de vista logístico, valorizando o conceito de entrega "just in time", a Morte é uma vergonha. Buuu, buu.

Está claro que é inevitável morrer, quanto a isso - batatas - nada a fazer. Um gajo já nasce a berrar e, a mim, ninguém me convence que à primeira palmada sentimos uma dor que nos põe a chorar. 

O que dizemos, a plenos pulmões, é: Fuooooda-seeee, eu não quero morrer! Buuuuuááááááá. Quem não chora, é porque está tão deprimido que já nem protesta. Ou já nasceu morto, naturalmente.

Apesar de tudo, de um ponto de vista prático, a utilidade de pessoas falecerem é inquestionável. Majé pessoas, não é eu. Nem pessoas que não me dá jeito nenhum que sigam desta para outra qualquer. Sinceramente, não vejo porque motivo não poderiam abrir uma excepção para mim e mais uma listinha seleta de indivíduos da minha preferência. É mais indivíduas, até.

...

O tema permite uma multiplicidade de abordagens tal, que dificilmente sairíamos daqui a horas de trabalhar o meio dia da tarde. Por isso, e com grande perda, deixem que me foque exclusivamente no motivo de vos vir secar a paciência hoje: A Morte não é indiferente ao banzé que dela se faz. E o alarido em seu torno, diz dos Povos.

Vejamos, morreu Mário Wilson. 

A maioria de vós, terá deste homem a mesma imagem que eu: Um senhor simpático, que treinou alguns clubes. Grande e reconhecido lampião, uma figura da agremiação de Carnide. Que tenha marcado o desporto em Portugal, pode ser mais discutível. Que seja um marco incontornável da nossa História e da nossa Cultura, ainda menos pacífico será.

Não se escamoteie a importância da bola na Vida, nada disso. Nem sequer a relevância de Mário Wilson para o Clube pelo qual se apaixonou. Tudo isso está muito certo e sou ninguém para tecer considerandos a esse propósito.

A mim, comum não apaniguado do dito grupo desportivo, em condições normais, a notícia devia deixar-me  aquele travo típico: Oh, coitado, morreu. Paz à sua Alma e esperança que a família e amigos se confortem neste hora de dor.

A chatice é que desenvolvi um pensamento analítico que me torna num idiota chapado. Quero dizer, as coisas fazem-me ter ideias e pensamentos e assim. Na maior parte das vezes, é coisas basto estúpidas. Deve ser esse o caso.

E então, estranho que tenha ficado hoje a saber muitas e muitas e muitas coisas sobre o falecido Mário Wilson. Todas desembocando numa grande certeza primordial: Mário amava o 5LB. 

E assim se explica o banzé. Todos os media transformaram o seu espaço noticioso num grande Obituário. Morreu Mário Wilson, o homem que jogou pelos calimeros, mas era dos de Carnide; o homem que se fez homem em Coimbra, mas era dos de Carnide; o homem que, enquanto treinador, ganhou um Campeonato Nacional e duas Taças de Portugal, pelo Carnide. 

Fiquei ainda a saber o que dele pensam - e quanto o consideraram sempre e o muito que com ele aprenderam - inúmeras figuras do nacional fintabolismo. A começar por gente de Carnide. 

E pronto, como era suposto, lá fiquei repreendendo-me por ter, até hoje, ignorado tanto e tantos. Em dado minuto, por breves instantes dele, cheguei até a decidir-me a estudar com afinco a História da Freguesia de Carnide.

...

Se vos disser que morreu Herberto Helder, não espero que todos abanem pesarosamente a cabeça, com ojolhos baixos. Porque sois ignorantes? Não. 

O espaço que o HH ocupou nos nossos quotidianos mediatizados, é bem menor do que o que lhe dedicaram pela sua morte. Mesmo sem saber se pugnava pela Freguesia certa, avisaram-nos da sua partida. Brevemente.

Provavelmente, o que se passa é que é mais fácil contar quantos milhões, de  todos os milhões que gostam de bola, são de Carnide. Muito mais fácil do que descobrir as dezenas, de entre os milhares que gostam de ler textos em forma de lista, que sentiram um certo vazio pelo desaparecimento do Herberto.

Simplifiquemos. Como unidade de medida, por grande respeito à propriedade privada, utilizemos a estação publica de TV.

A RTP dedicou à noticia do infeliz desaparecimento de Mário Wilson uma série de, pelo menos, 5 testemunhos, totalizando o tempo de antena de 3'50'' minutos. Estamos a ignorar, por não ter visto, o tradicional "A vida e obra" e, mesmo tendo um grau de certeza elevado, não estamos a considerar que a RTP passou, ou passará, o excerto de determinada gala do 5LB em que Mário Wilson interveio.

Herberto Helder será, segundo doutas opiniões, considerado, em tempo, uma figura à altura de Fernando Pessoa. Goste-se ou não da sua obra, o que esta asserção encerra para a Cultura de Portugal, para a sua História e, acima de tudo, para a parte mais importante do seu Património - que é a Língua - é de tal modo grandioso, que se sente o silêncio que nos invade a Alma. Caramba, Pessoa!

O Herberto morreu há mais de um ano, sabíeis? Se a resposta é não, é porque não estivestes atento ao nosso canal público. De facto, por época do seu desaparecimento, a RTP dedicou-lhe nos seus noticiários este excerto. Totalizando 1'25''.

...

Debato-me desde esta manhã com três insistentes desconfortos. 

O primeiro, é uma questão: O que quer isto dizer de Nós?

O segundo, é um esforço - que será bem sucedido! - de vencer preconceitos e estereótipos. Enfim, deixar-me de merdas. A bola é mais abrangente do que a Poesia - e então? Mas quanto disto tem a ver com a importância que nos ensinam a dar a cada uma?

O terceiro, é uma certeza absoluta: Nenhuma freguesia é um País inteiro.

...

Para cabal esclarecimento das Almas, diga-se:

Nada contra Mário Wilson. Pelo contrário, repito que me parecia um senhor muito cordial e equilibrado. E simpático, outra vez.

Herberto Helder não está entre os meus autores favoritos. Também não posso dizer que não gosto, porque não conheço o suficiente da sua obra para ter opinião. Sim, é deste tamanho a minha ignorância quanto ao assunto. 

...

A poem for obituary: Se o Sul é para trás e o Norte é para o lado, é para sempre a Morte.