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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

The SEDCAS experiment III: A segunda morte de Ludemilo Silva

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.


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Tirando o facto de estar morto, Ludemilo Silva era um homem francamente vulgar. Nem bonito, nem particularmente feio, mediano em todos os aspetos exteriores da sua inexistência. 

De tal maneira que em certa ocasião, posto por desgraçada coincidência numa daquelas linhas de reconhecimento de criminosos, metade das testemunhas o apontaram culpado, por vergonha de não saberem quem teria sido o malfeitor que atentara contra a lei, mesmo defronte dos seus narizes. Ora - pensaram - pode muito bem ter sido aquele, não estranharia se fosse. A outra metade de acusadores foi igualmente incapaz de determinar o culpado. Puderam apenas jurar a pés juntos que Ludemilo é que não fora. Não - argumentaram - um tipo deste modo vulgar não teria sido, que daria logo conta dele, tão parecido que é com boa parte dos meus vizinhos. Pelo sim, pelo não, a autoridade decidiu prendê-lo por algum tempo. Até para que não desse a ideia de terem estado somente a desperdiçar o rico tempo do transeunte e o precioso dinheirinho do erário régio. Lá naquela terra havia um Rei, já se vê.

No dia em que foi libertado, embora ninguém se lembre dele naquela prisão, Ludemilo foi bafejado pela infelicidade de bater com a cabeça no suporte do chuveiro e assim se feneceu. É certo que era um banho público, mas ninguém, do Guarda Retretes às mui infelizes senhoras da limpeza, se quis meter na morte do homem. Deixá-lo estar, é uma pessoa como a maioria delas, nenhuma diferença. Se lhe deu para se deitar um pedacinho, fecha-se a porta deste cubículo. Já é tempo de nós, os iguais a todos, sermos uns pelos outros, apre! Cubículos é que não faltam, vamos agora incomodar o senhor. 

Foi portanto já morto que Ludemilo se voltou a vestir, com muito gosto em usar a roupa interior nova que comprara especialmente para aquela ocasião, e a sair fresco e perfumado para o resto da sua morte.

Se pensam que a tristeza encharcou os Silva desta casta de Silvas, sabei que estais basto enganados. Dá-se o caso de ser este o último espécimen de um modesto ramo Silvesco. Ou seja, muito pelo contrário, avisados da forma que se avisam os mortos do falecimento dos seus mais queridos - não, não posso saber qual é, pois eu próprio me encontro consistentemente vivo, estou em crer - os Silva festejaram rijamente a breve chegada do marido, filho e irmão que tanto lhes vinha faltando. E respiraram aliviados, por se ter ele, um homem tão bom, visto livre do mal da vida. Enfim, basta morrer para se ter estado vivo, essa é que é essa.

Já percebem o imenso desgosto que a todos assolou, ao darem-se conta de que, por alguma idiossincrasia do sistema, Ludemilo era morto mas não trasladado para o lado certo do Universo. Isto é, para todos os efeitos, os Serviços consideravam-no vivo, pelo que não havia remédio para a família senão esperar que alguém do Mundo dos Vivos se decidisse a declará-lo morto. O que prometia ser uma longa espera. Mais unidos do que nunca, os Silva transformaram Ludemilo num mártir lá do lado dos mortos, com direito a velinha em frente à sua fotografia - a primeira de todas no aparador da sala - e tudo, e fizeram as delícias dos noticiários vespertinos.

Devemos aqui deter-nos, mesmo que não façamos ideia - eu não faço! - de para onde vamos, e perceber que, por incómoda e injusta que seja, a situação faz sentido, de um ponto de vista logístico. Enquanto uns não derem baixa do artigo, não podem outros vir reclamá-lo. É certo que no caso vertente se podem criar alguns fantasmas e almas penadas, mas o imbróglio que causaria o fulano estar em contacto com duas estruturas sociais, uma viva e outra nem por isso, seria infinitamente maior. Às tantas, já ninguém sabia de que lado estava e desatavam pessoas a fazerem-se de mortas quando estavam em pleno viço e outros a desenterrarem os mortos para a ceia de Natal. Ou assim.

Ludemilo não teve outro remédio que não fosse desenvencilhar-se sozinho no meio dos vivos. Sem Estado nem Igreja, valeram-lhe uns poucos comerciantes amigos - um deles este vosso criado - que, reconhecidos pelo tratamento afável e esmerada educação de todos aqueles Silva, pouco se ralaram se estava o homem vivo ou morto e trataram de lhe assegurar uma austera sobrevida: um tabique numa cave, dois fatos velhos, uma camisa branca e outra azul, umas ceroulas e duas mudas de roupa de dentro, as refeições sempre na mesma mesa, ao canto. Muito não será, mas é quanto basta para poder a pessoa levar uma morte digna, enquanto não morre de vez.

Fora das horas rigorosas que se impunha para comer e se recolher, ninguém sabe ao certo por onde penava. Juram uns que o viram na audiência de programas de televisão da manhã, outros reconheceram-no num arrepio na espinha no autocarro, alguns cumprimentaram-no à saída do cinema e em casas de má fama. Houve até quem, rapidamente internado, o tivesse pressentido a tomar posse de Presidente de uma República obscura da Micronésia.

Entre dois copos de bagaço proibido, o décimo segundo e o décimo terceiro, um dia confessou-me que, por teimosa perseverança e alto berreiro, a sua eterna metade conseguira um regime de visitas precárias d'além túmulo. E assim preenchiam as tardes, ele de bandulho aviado com o prato do dia, ela de brilho intenso e paz imensa, sentados lado a lado, em bancos separados, sem se tocarem - por manifesta impossibilidade de isso acontecer entre seres de partes opostas do Universo - no miradouro onde fizeram, tanta vida atrás, as primeiras confidências:

- Sabes Ludemilo, eu não me importo se me tomares aqui, agora mesmo. Nem um pio, homem. Mexe-te, anda.

Também não conversavam, por serem distintos os comprimentos de onda em que se exprimem os Seres nos diversos patamares da sua localização corpórea. Os que insistem em ter corpo, está claro. Ficavam só todo o tempo que podiam assim, parados, lado a lado, respirando-se.

À frente o vale, o resto da Vida e a Morte inteira. Nunca foram vistos.


By Sedcas | www.sedcas.pt

Não posso já ser preciso no número de anos que a situação se demorou, pachorrando pelos Gabinetes dos Senhores Secretários de aquém e além Mundo, espreguiçando-se em cestos de "Entrada" e fazendo férias em cestos de "Para Despacho". Sei que um dia alguém chegou esbaforido e gritou da porta, brandindo um envelope timbrado da Casa Real:

- Morreu o Ludemilo! Mesmo! De vez.

A festa que foi. Ainda hoje me lembra. 


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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

The SEDCAS experiment II: A prisão em si

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

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Um dia eu fujo. Hoje não que chove. Em dias assim, prefiro ficar monótono no alto da colina, debaixo do coberto, a deixar-me perder na folhagem da árvore grande. Muito desatento ao que se passa em redor, absorto no gesto automático da mão à boca, o fumo expelido em argolas espessas.

À copa, posso chamar-lhe mar. Não há Chefe de Turno que o possa impedir. Esta liberdade da mente é o terror de toda a ordem. Entre duas fumaças, gostava que me viesse - só por um apetite - um poema sobre o mar: As ondas desbastam o penhasco. Uma coisa assim, agreste. Uma fúria de água contra rocha negra, o Mar do Norte a rebentar em vagas de Vikings na costa da Normandia. E eu Thomas, no rumor da baía de Swansea, assaltado por uma estrofe súbita, toda arestas.

À copa, posso chamar-lhe deserto. Talvez seja o gosto amargo da beata que me seca a boca, a garganta uma nuvem de fumo e pó. Não há Senhor da Portaria que mande no meu horário, posso desertificar-me em paz. Fingir que o mescal me alucina e o deserto de Sonora se enche de mulheres nuas, a pele de um negro tão negro e brilhante que é quase azul. Arrasto-me, uma personagem de Bolaño, à beira da morte, provavelmente colecionando cadáveres e telas de obscuros pintores impressionistas da América do Sul. Acenderia outro cigarro, se o tivesse, antes de deixar cair na areia manchada de sangue o coldre e me entregar nos braços suados da miragem.

É pena que chova. Este tempo deixa-me as pernas moles e a vontade embaciada. De outro modo - uma azeda presa nos dentes - aí me veriam, serpenteando monte abaixo, pela sombra do arvoredo, até à saída. Não sei porquê, mas vou de chapéu de palha e camisa aos quadrados, solta por fora das calças, sem botões apertados. O calor que deve estar. Desço devagar, mastigando os passos, sem pressa. Não há por que a pessoa se apresse, em tendo a certeza de para onde vai e de quem a espera. Vou lento, aproveitando o Verão, mas inexorável. 

Vou para ti, para esse sabor a sal e Sol, eterna praia, férias permanentes. Não há Doutor Diretor que me roube delas.

By Sedcas | www.sedcas.pt
Iria, digo, não fosse a chuva. Chovendo, não saio. Podias vir visitar-me.



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- Quer um cigarro, senhor Zé? - Diz-lhe, simpática, a bata branca.
- Pois claro, muito obrigado xôtôra.
- Enfermeira, senhor Zé, enfermeira. - Sorri-lhe. Ele faz um gesto com a mão: é a mesma coisa. Ela acende-lhe o cigarro.
- Quando nos despacharmos, podia fazer o favor de me levar para dentro. Esta chuva... - Hesita. - Parece que me deixa as pernas moles.




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A prisão em si: ...esquecido, adormeceu.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

The SEDCAS experiment I: A marcha de Um

NOTA PRÉVIA: The Sedcas experiment será(?) um conjunto de textos de dimensão indeterminada, inspirados por, feitos a partir de e em torno de imagens do grande SEDCAS. Este formato blogueiro e a pouca destreza do dono do tasco ao nível da cibernética, não favorecem as verdadeiras estrelas deste e dos próximos(?) posts desta série: as fotografias. A solução é mesmo saltarem para o site e deliciarem-se. E contratarem o moço, se for caso disso. Sim, ele paga pela publicidade.

Saibam que este texto é longo, saibam que não é sobre bola, saibam que não tem graça nenhuma, nem fala particularmente mal de alguém. Não sei como ficará formatado nos vossos telefones, mas eu, se fosse a vocês, andava já para baixo até à imagem e lixava-me para o resto, embora fosse suposto que ela vos viesse a surpreender de alguma forma. Dentro da minha cabeça passam-se coisas. Mas lá está, fui eu que escrevi, portanto já sei o fim. Aliás, não sei. Nenhum de nós sabe...


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- Um caminha. Pouco mais faz. Se puder imaginar uma linha reta, é provável que Um a prossiga desde sempre. O mesmo acontece se preferir uma série de curvas e contracurvas. O meu caro amigo só muito raramente deixa a imaginação entregue à simplicidade. – Puxa uma longa fumaça do seu cigarro.

- Ora, seria um paradoxo, isso da imaginação simples. Que não da simples imaginação, já se vê. Antevejo um "mas", acertei?

- Pois claro. Digamos que, se lhe quisermos percecionar uma direção, o que está longe de ser líquido, Um marcha. Desfila, na minha mais sincera opinião.

- Ah, mas isso parece soberbo. – Aproxima-se, interessado, inclinando-se para a frente na poltrona. – Quando o diz assim, dá-lhe uma certa graça, não acha? Desfila. – Repete de olhos fechados, a ver a palavra a formar-se no lago da sua mente. Uma mulher a emergir da água, água ela mesma.

- Bom, detesto conspurcar a imagem, mas não é bem um desfile gracioso, embora tenha os seus momentos. É capaz de ser mais Ovar do que Veneza, percebe?

- Mais divertido do que bonito?

- Mais Carnaval do que Arte. Um caminha, marcha, anda. Mas a coreografia é caótica e nem vale a pena começarmos a discutir a cenografia.

- Assim tão má? – Franze um sobrolho apenas. Uma qualidade que Austin muito inveja.

- Oh, tem dias. – Reflete por um segundo. – Pois, dias. Não vá o meu caro julgar que se trata de um curto trajeto de horas. Ou uma corrida de minutos. Por momentos caminha, noutros marcha, por vezes desfila. Tem alturas que corre, alturas que dança. O cenário acompanha, isso é certo. O que não quer dizer que seja continuamente bonito. Aliás, visto friamente, é quase sempre basto desengraçado.

- Muito previsível. – Volta a recostar-se no seu assento almofadado, estofado com fino tecido, comprado a retalho numa feira de segunda mão, cruzando as mãos, as suas, que são primeiras e únicas, sobre a proeminente pança.

- Agora utilizemos a tecnologia ao dispor e aproximemos a imagem. Repara na multitude de grilhetas? E chamo a sua atenção para esta espécie de névoa que sucede a Um. Aqui, mesmo atrás. – Aponta com uma luzinha vermelha, fazendo círculos na tela.

- Sim, sim, que curioso. Tenho a certeza que as suas engenhocas modernas conseguem chegar-se ainda mais.

- Não duvide por um instante. – Com ar de menino a mostrar um brinquedo novo, certo do espanto que irá causar, senão inveja. – Esteja preparado.

Não discorramos sobre quanto muda no Universo na fração indetetável, mas muito real, de tempo que vai entre carregar num botãozinho e isso produzir algum efeito. A nossa missão aqui, se alguma, não é essa. Apesar de dar vontade. Resistamos ao impulso e concentremo-nos na tela. Como faz agora Mr. Deluxe, que se levantou de um salto, contrariando a gravidade agravada pelo seu abdómen distendido. E fica assim, as banhas ainda a abanar, de boca aberta, por um instante. Até conseguir pronunciar:

- Mas…mas…Austin! É toda uma parada! – O outro cruza as mãos atrás das costas e deixa-se estar, satisfeito, a balançar sobre os seus próprios pés.


À frente, Um. Aos seus tornozelos prende-se um número indeterminado, e indeterminável, de correntes. Embora finas como capilares, todas, algumas deixam a certeza da sua indestrutibilidade. Outras nem tanto, apesar de demonstrarem o firme propósito de se manterem alapadas à perna de Um.

Pela frente, nada. Só lá muito longe uma ideia ténue de propósito, muito para lá do vácuo próximo. As bermas do suposto caminho realizam-se a cada instante, a cada passo. Nelas se erigem as bancadas apinhadas. O movimento aqui é frenético: as raças misturadas, os géneros múltiplos, os transeuntes - de copo na mão e frituras em punho - visitam as bancas de merchandising e confraternizam alegremente. Quando não estão empenhados em aplaudir ou vaiar o desfile lá de baixo, está claro.

Porque escolhem uma das posições, não se sabe. Nem importa. Decidem na hora, pelo que mais lhes apetece, num momento de rara pureza da espécie. Como quem se cruza com alguém numa carruagem de metropolitano e pensa: partia-te as trombas todas, só não faço ideia porquê.

Logo atrás de Um, a ala dos Eternos. Entenda-se a Eternidade como o que de facto é: o período durante o qual existe. No caso vertente, Um. Ou os Eternos. De todas, é a ala mais pequena, mas o batalhão mais feroz. Armados até aos dentes, prontos – julga-se – para dar a vida e a camisa, são aqueles de quem Um se despede todas as noites. Não obrigatoriamente por palavra, gesto ou presença. Mas sempre. Mesmo que num fugaz lampejo da mente, instantes antes de se deixar a pessoa de lembrar do que a mente continuará a fazer, entregue a si própria por umas horas. Apenas.

Estes são os que podem determinar de forma mais intensa o ritmo da marcha. Um para e puxa, se Algum se atrasa. Algum puxa e para Um, se tem que descansar. De cada, desprende-se toda uma nova parada que interage com a de Um, num caos de interligações venosas e descargas elétricas mais intrincadas do que um cérebro. De macaco.

Os figurinos da Ala dos Eternos são muito diversificados, acompanhando frequentemente o que veste a disposição de Um, assim como, noutro passo a seguir, impõem a Um a cor do seu estado de Alma. O efeito é estupendo para o público: uma paleta de cores e suas emoções, indo do lúgubre ao orgasmo em segundos, pontilhando os mesmos momentos de alegria e dor, luxúria e amor filial e, dada a parada que agora Austin descreve ao seu embevecido amigo, uma dose reforçada de infantilidade. E momentos de pura razão, abotoados até ao pescoço, em colarinhos de folhos e rendas e espartilhos pela cintura. Abaixo, uma boia com a cabeça de um pato e fio dental, as plantas dos pés em areia muito fina. Logo a seguir uma galocha a desbravar um oceano de lama peganhenta, o tronco nu no Verão do alpendre, cigarro ao canto da boca e uma melodia familiar: tananananaaa tana tana tanananaaa sooo, so you think you can tell…

Segue-se o rebanho dos zombies. Sempre de grande impacto para os espetadores, esta ala arrasta-se atrás de Um sem muita conversa audível, para além dos seus típicos grunhidos cinematográficos, quase por obrigação. A verdade é que deve ser muito maçador estarem sempre a emitir aquele som arranhado da garganta. Já para não dizer que dá cabo das cordas vocais à pessoa, mesmo que morta. Mas enfim, cada um será para o que morre e as tradições são um tanto rígidas nesta dimensão. Assim parece.

Para o que importa, lá vão, braços estendidos e vísceras de fora, decompondo-se pelo caminho, mas estranhamente intactos. Como que cristalizados num momento, nem sempre o da Morte, nem sempre eles mesmos. Imagens que Um guarda, pessoas que toma por suas, ainda que o tempo o vá fazendo duvidar de que seriam estas que insiste em carregar. Pode muito bem ter-se esquecido, tê-las construído em peças, como se fossem legos de palavras, gargalhadas, lágrimas, cheiros e tons de voz.

Se todos são de facto cadáveres ou se estão vivos de um ponto de vista biológico, não podemos saber. Em alguns casos, nem Um o saberá. Importa apenas que caiam na categoria dos que morreram para esta parada. Ou mataram o porta-estandarte, uma delas. Por permanecerem de tanta relevância, aqui caminham, poucos metros atrás de Um.

É muito curioso perceber que esta é, com frequência, a zona do descanso. Como se Um se entregasse nos braços dos mortos-vivos: uns mordem-lhe a carótida, outros catam-lhe os longos cabelos que não possui, outros tomam-no no colo, todos o protegem à sua falecida maneira. Não é que não seja um pouco nojento – gore, é como se diz, de forma um pouco eufemística, talvez. Acrescentaria Austin. – mas é aparentemente retemperante, este abandono do concreto. Ora, nem isso podemos dizer, sendo perfeitamente realistas.

O estado não é de transe ou de total vazio da mente – mindfulness, apesar do paradoxo, meu caro Deluxe. – muito pelo contrário. Os mortos mortos e os mortos vivos, todos caminhando sem parança do seu desengonçado jeito, são bestialmente concretos. Existem e conversam com Um, afagam-lhe o antebraço, compreensivos, ou cutucam-lhe o peito com o indicador esquelético, incentivando ou acusando, isso não temos como descobrir. Não a esta segura distância, pelo menos. Também não seria correto afirmar que Um repousa, tal a refrega de valentes mordidelas e alguns encontrões. Diremos, por respeito à verdade, que se encontra. No mais profundo da Morte, qualquer que seja o seu estado, revê os traços de si e refaz o seu caminho. Renova-se. É certo que parece um pouco tolo, ninguém o nega.

Siga a dança para a ala dos Frequentes. Como o nome deixa perceber, são uns que não sendo permanentes estão muito presentes. Manifestam-se em socalcos, uns quantos bastante profundos, traçados na pele de Um. Juntos constituem uma profusão de tempos deveras assinalável. Mistura-se o passado e o futuro, numa orgia de conjugações que constroem grande parte do presente. Antecedem e derivam, inferem e deduzem, estão e já foram. De todas, são a ala mais ativa, a longa distância. Dir-se-ia um formigueiro em plena atividade, só que sem carreiros ordenados nem tarefas explicitas. O trânsito do Cairo, um souk sem turistas, a China se fosse transferida para o Lichtenstein, com todos os seus pacientes chineses.

Eis aqui chegado o primeiro carro alegórico: de baloiços suspensos em altas traves, balançam seminuas mulheres, de generosos peitos e curvas inatacáveis, sorrindo e acenando permanentemente à multidão. Nas laterais, poetas lançam aos pés descalços do povo do peão rascunhos das suas obras inacabadas; intercalados por romancistas muito improváveis que leem, aos gritos, capítulos completos das suas novelas. A um canto, recria-se um openspace, onde anacrónicos mangas de alpaca despacham ofícios relativos ao julgamento de um inseto gigante. Bem no centro da viatura, Kant e Schopenhauer jogam à sueca contra Descartes e Engels, enquanto uma profusão de gregos faz grande alarido, aguardando a sua vez no bota-fora. Entre todos, pelo meio da Vida, crianças em estado adulto correm atrás de uma bola. Às vezes de espelhos. Dos altifalantes, berram i am the law; em ocasiões sussurram, gelando o sangue do mais destemido, you’re a beast, evil one; e é frequente todos pararem quando uma sereia toma o microfone e canta whatever walks in my heart will walk alone. Não se sabe se é figurino ou metade peixe, só que todos os marinheiros caem mortos.

Tossindo o fumo negro do escape do carro à sua frente, vem a ala do Enjoo. É uma imensa massa de indivíduos não anónimos que condicionam, das mais díspares maneiras, o ritmo do desfile. Têm a fabulosa qualidade de liquefazer o asfalto, atrasando a trupe. E de criar com essa pasta ondas que balançam e balançam a mole, vai e vem, sooooobe e deeeesce, de cá para lá e para os lados e vamos de novo, do princípio, sem quase sair do lugar. Daí o nome - concluirá vitorioso Mr. Deluxe, entrelaçando os dedos por altura do seu mítico umbigo.

Sendo grande a anterior, é ainda maior a seguinte. É fácil de concluir à vista desarmada, basta olhar para a mancha de marchantes que enche todo o campo de visão, nos seus trajes multicolores e feitios variados. Soltam foguetes e lançam morteiros, disparam confettis e balas de canhão, festejam e matam. Um não os conseguirá nomear, mesmo que tenha de alguns a vaga impressão de os reconhecer. Talvez do supermercado. Todos se cruzam, por algum motivo, no caminho e lhe atrasam ou adiantam o passo, consoante as necessidades do seu único propósito: caminharem também eles.

Encerra-se agora o cortejo, com grade algazarra em volta do segundo carro alegórico: um enorme, desproporcional, imenso ponto de interrogação sobre rodas. Conduzido por um palhaço de ar um tanto aterrador. Mais Joker do que Batatinha. O sinal de pontuação escorre sangue, suor e lágrimas. O que seria um belo cliché. Nada como fechar a estória com uma frase feita, criando empatia transversal com a audiência. Só que cheira a rosas brancas e flores campestres amarelas e tulipas quase negras. A ovos estrelados e a caril de camarão, em dias marcados. Lá se vai a chave de ouro.

À medida que avança, a um tempo arrastando-se e planando quase diáfano, aumenta a comichão em pontos determinados das costas. As asas distendem-se.


By Sedcas | www.sedcas.pt



- Que desilusão, Austin. Mudam-se uns sinais e algumas referências e podia muito bem ser você a desfilar. Tenho até a impressão de ter adormecido em algumas partes. – Arenga Mr. Deluxe, bebericando de um balão de vinho tinto aquecido.



- Ora, vá-se foder, sim, Deluxe? Mudando isto e aquilo, pode ser Um qualquer.