terça-feira, 27 de junho de 2017

Morreu Ermelinda

- Este rapaz é esquisito, mais os seus fatos garridos. Não achas, António? Ora, tu nunca achas nada, já se sabe. E andas cá um lanzeiro pouco mais ou menos, ai andas, andas. Quem te quer encontrar, é na cama. Escuta o que te digo, António, não te dês à cama, homem. Olha que quanto mais te habituas, mais ela te puxa. Qualquer dia, queres e já te esqueceste como se levanta uma pessoa. Uma bela manhã, dás por ti e morreste.

Guarda os óculos na bolsa castanha de veludo. Deixa-se ficar com a cabeça baixa, por segundos. E retoma:

- Tu não me morras, homem de Deus. Sei lá o que seria de mim. Já te escolhi assim cachopito por isso mesmo. Para ter a certeza que ia à frente. Já imaginaste a minha vida se tu morrias? Deus me possa guardar de tanta solidão. Da falta de propósito, de não ter dois ouvidos que aturassem as minhas lengalengas. Olha, vou é aquecer o resto da sopinha e já almoçamos. Podes ir para a taberna jogar o dominó depois, que eu tenho a minha sesta agendada. - Sorri. - Sou uma senhora muitíssimo ocupada, caro cavalheiro. Claro que não te apetece, já cá se sabia que ao menino não lhe cheira a sopa. E levantar o traseiro da palha, também não. - Volta a sorrir. - Deixa-te lá estar, malandro. Trago os pratinhos e comemos aqui, a fazer companhia aos homens das notícias. Mas não digas que não te avisei: Quanto mais te deitas, mais deitado ficas. 

Levanta-se, com as mãos nos joelhos, as articulações rangendo e um aaii em que já ninguém repara. Nem ela.

...

- Isto de a pessoa se pôr a pensar na morte é uma maçada. Com a conversa da hora do almoço, passei o resto do dia ansiosa. Já sei que é um disparate, mas que queres? A gente não manda nos apertos da Alma, pois não? Fico a pensar em mim, para aqui triste e só, à espera que venha algum voluntário trazer-me as compras, para poder aquecer uma pouca de água com um legume qualquer. Oh, está bem, é claro que é egoísta. Afinal, batias tu a bota e é de mim que tenho pena. Não te aperreies, homem, são coisas de mulher. E não era agora, tantos anos passados, que começava a ter tento no que te digo. Já não nos namoramos propriamente, caso não saiba, senhor António.

Sentada na beira da cama, alisa a camisa de noite, branca como os cabelos, entretanto soltos do eterno carrapito. Longos pelas costas. Deita-se muito direita, com um ligeiro esgar de dor, a nuca na almofada, ao lado dele. Diz-lhe:

- Achas que estamos a ficar deprimidos? Eu nesta aflição parva, tu nesse marasmo. Ainda nos faltava acabarmos dois velhos fracos da cabeça. Com problemas de gente nova. Valha-me Deus. 

Solta um risinho que move os ponteiros décadas para trás. Para os anos em que aquele mesmo som parava diligentes cavalheiros de chapéu e fato claro, desviando-os do caminho das suas repartições. Vira a cabeça para a parede, prossegue:

- Uma noite destas, aperaltamo-nos e levas-me aos fados. Ainda deve haver alguma casa de fados por aí. Em Lisboa, de certeza. O que tu gostavas de me levar aos fados, pois era António? Deixa-te de fitas, eu bem sei que te inchava esse peito de lá entrares comigo pelo braço. Até te digo mais, se juntares outras dez velhotas da minha idade, aposto que sou a mais bonita delas todas. Ainda tens que me levar aos fados, enquanto posso andar mais ou menos direita. E limpinha. - Ri-se e dá-lhe uma pequena cotovelada. Ele abana muito ligeiramente e parece soltar um grunhido. É provável que, do lado oposto ao da parede, onde continuam pousados os olhos dela, tenha sorrido. - Mas se não acontecer, também não tem muito mal. Tenho a impressão de que posso morrer um pouquinho feliz. No mínimo, morro no meu posto: A tomar conta do meu homem, da minha casa, da vida das vizinhas. - Desta vez, chega mesmo a soltar uma gargalhada. Impossivelmente fresca, tendo em conta as rugas. Vira o olhar para o teto. - Bem, deixo-te a ver os teus programas do futebol. A paciência que tu tens, apre! Eu cá preciso do meu sono de beleza. E sabemos bem que se não adormeço primeiro do que Sua Excelência o Senhor António, não adormeço de todo. Tal a betoneira, hein? - Pega-lhe numa mão, sempre frias, e fecha outro dia.

...

Ela anda, mais depressa do que seria suposto, de um lado para o outro no quarto, em alvoroço:

- Diz-me António, tu diz-me o que fizeste. Ou então vai lá tu à porta. Ai meu Deus, ai meu Deus, que tenho um pressentimento tão mau. - Muda de ideias. -Não, não vás tu à porta. - Já chora. - Não vás António, não vás que te levam. Ai Senhor, não deixes que o levem, não deixes que para aqui fique sem ninguém. Ai que eu morro. - Cobre a cara com as mãos. - Já sei, já sei. Deixamo-nos ficar muito sossegados e calados, vais ver que se vão embora. É a guarda António, é a guarda. E tu não me dizes porquê. E o meu coração já sabe que é por ti que vêm. Que fizeste tu, homem?

O barulho da fechadura a ceder passa despercebido, como todas as coisas irrelevantes num momento trágico. Os passos da senhoria, liderando o pelotão, pelo corredor, são silenciosos. Um guarda alto escancara a porta do quarto, para os encontrar deitados, lado a lado, de mão dada, os olhos dela a escorrerem água.

...

Há uma certa compaixão, mas sobretudo uma grande pena, na voz do rapaz. A farda impecavelmente passada, as botas a brilhar, um orgulho que se nota no emblema ao peito. Os sinais da recruta recente, da esperança quase intacta. Acocora-se do lado dela da cama. Segura-lhe um braço e diz-lhe:

- Dona Ermelinda, lamento imenso, mas temos que levar o seu marido.

Ermelinda está morta.

...




8 comentários:

  1. Meu velho, tu põe-te fino! Também te escolhi mais novo para não me faltares. E se acontecer, compro 2 pinheirinhos de cheiro e penduro-tos nas orelhas para enganar os vizinhos! <3

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    1. Descansa, eu não cheirarei mal. Até podre cheiro bem. Majolha 'priga, daqui a uns 150 anos, lemos juntos o ROmeu e Julieta, combinado? <3

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  2. Bateu!
    Muito bom!

    Abraço

    PS:
    Haja mais rapazes com orgulho no emblema que trazem ao peito!
    Próxima paragem, galinheiro!

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    1. Pois, a mim também. Obrigado, oh third follower ;)
      Abraço

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  3. poças, ó Silva, vai escrever assim para o carvalho do teu homónimo.
    que nunca te dê uma micose nos dedos, pá! e pensa lá nesse livro, que estou a falar bem a sério.

    abr@ço
    Miguel | 92º minuto

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    1. Não dá não. Eu cá nunca meto os dedos em porcarias. :)
      De resto... olha, corei, carago. Obrigado, xôr Lima.
      Abraço.

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  4. Entre muita coisa boa, o que mais brilha é o que nos tem faltado: o título.

    Aquele abraço

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    1. Eu acho que morreram ambos, embora só de um se tenha declarado o óbito.
      E também acho que os gajos da btvi se enganaram nos nomes. Os meus é que estão certos...
      Outro aquele abraço :)

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