terça-feira, 4 de julho de 2017

Da memória - Carved in soul

Olá, sou eu. Como estamos hoje, meu Amor?

És uma das minhas primeiras memórias, sabias? Essa história da vida uterina e de se lembrarem as pessoas de nascer e isso tudo, a mim não acontece. Devia andar distraído no útero e ocupado com os brinquedos no berço.

Quando puxo a fita toda para trás, como fazíamos com os gravadores, chego a Ti. É apenas um fragmento: Não me lembro da Tua roupa, nem da Tua expressão. A bem dizer, não recordo sequer o Teu rosto. Sei que estavas linda, porque sim. É um passeio que, pelo menos a esta distância, parece muito largo, numa curva. Há um carro estacionado, alguém lá dentro, Tu cá fora. É provável que a Mamã esteja por perto, mas não te posso jurar. Estás tão contente e eu tão feliz. Não sei o motivo da tua alegria, mas eu pulo de Felicidade só porque chegaste. É tão puro. 

Sim, a Mãe está. É pela vaga reminiscência da Sua presença que sei que é uma visita fugaz. Tens pressa. Uma sombra no meu contentamento.

Vá, sabemos os dois que o mais natural é teres levado uma prenda e esse ser também o motivo de tanta algazarra. Porventura o carro a pedais. Porra, claro que me lembro. Não posso esquecer.

Hoje sei que uma parte importante de mim tem origem nesse brinquedo. O meu passaporte para a liberdade, para a imensa vastidão desconhecida do quintal dos Avós. O primeiro amigo - sim, aquele carro era meu amigo - a ensinar-me que ter medo de nós próprios é, muitas vezes, uma atitude inteligente. Mesmo que não nos impeça de acelerarmos, a toda a brida de pernas de 4 ou 5 anos, contra os muros. Só para perceber o que acontece e porque a adrenalina da velocidade vale bem a ferida e a nódoa negra. 

Pura sorte, querida, pura sorte. À custa desse bambúrrio, nunca me atrevi a ter uma mota. Foi por aí que começaste a salvar-me a Vida. Era África e o Tempo infinito.

Claro que também era por ele que a Avó me apanhava nos anexos dos criados, à hora da sesta. A jogar bola, se calhar. A jogar áquela coisa das pedras nos buracos feitos no chão. Não sei o nome, mas lembro-me que era péssimo. Riam-se muito de mim, os filhos amigos e os pais e as mães deles. Depois, elas davam-me colo, como a todos os outros pretinhos. Até a Avó gritar Paulinho! Denunciado pela perniciosa prática do estacionamento selvagem. Burro.

Se calhar, nada disto aconteceu. Podem bem ser só construções da minha mente, essa coisa enrolada sobre si mesma em múltiplos nós. Mas o carro, Tu, o passeio, e a Felicidade de teres chegado, isso é certo. Mostro-Te as fotos, se não te lembrares. Mostro-Te a Alma, se duvidares.

Farto-me de ouvir pessoas dizerem que é melhor manifestarmos o nosso Amor pelos outros enquanto podemos. Nós ou eles. Faz-me confusão isso. Como é que as pessoas se Amam e não dizem? Deve ser muito doloroso manterem-se calados.

Nós dissemo-nos Amo-te todos os dias em que nos falámos. Runs in the family. Será que gastamos a palavra? 

Nos dias em que não soubemos um do outro, mesmo naqueles em que possas ter precisado do Irmão que - egoista, cansado, distraído - não esteve, sei que nos Amámos. Porque a minha primeira memória é ficar Feliz por Te ver. Estás gravada na minha Alma.

( Oh, eu sei da ausência. E dói. Mas menos do que um tumor no úmero. Menos do que os espelhos que ignoravas. Deixa-me estar só a remexer na suportável dor da memória. Nessa, ainda encontro muitas forças novas. Não Te permitirei que me obrigues a encarar a Tua dor, por agora. Not just yet. )

Acho que, mais do que se reconhecer uma coisa tão evidente como os Amores, precisamos de mostrar que entendemos os pequenos gestos. E os grandes sacrifícios também. Conferir-lhes valor. O mesmo que quem os pratica lhes atribui. Um beijo, um sorriso, uma flor, uma tarde de quarenta graus e sexo desvairado, uma série de disparates - em sequência - para remendar a Vida dos que se Ama acima da Vida, um carro. De brincar que seja.

Sou fraquinho nisso e Tu foste sempre tão eficaz. Vou tentar melhorar, mas não sei se conseguirei. Mas hey, nós vamos falando. Até já.

...

2 comentários:

  1. "Oh, eu sei da ausência. E dói. Mas menos do que um tumor no úmero. Menos do que os espelhos que ignoravas."
    É isto.
    Obrigada.
    Raka *

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