sexta-feira, 14 de julho de 2017

Nomes - Trilogia da Abelha: BI < 35


"São, definitivamente, as fotografias que me denunciam. Aquele tipo já um tanto velhote, afinal, sou eu. Ao espelho, não sei como, ainda arranjo maneira de enganar. À câmara, não. Esta é a minha razão.

Do alto da honestidade dos meus olhos, crivado das rugas em que já me reconheço, purificado pelos meus braços caídos na luta inglória contra a evidência, proclamo a tua eterna beleza. A permanente juventude em alguns dos teus sorrisos e em todos os passos. Recordas-te?

Guardas, rasgadas, ainda em ti as palavras? Pois sabe que, enquanto eu envelheci a cada clique, tu continuaste a flutuar em pequenos passos deslizantes. Entre tempestades de areia em desertos inóspitos, a tua pele o oásis em que, inesperados, nos encontrámos; perante as tragédias, a tua carne o abrigo das lágrimas e do fogo. É a essa Paixão que me consagro. 

Talvez seja esse o verdadeiro segredo, nunca saberei. Nunca saberás. Pode ser que uma estranha espécie de sinceridade - despropositada, tantas vezes - tenha sido capaz, por ínvio caminho, de fazer deslizar os teus passos sempre até mim. Como uma corrente suave, tão fácil de contrariar em duas braçadas vigorosas, mas que te leva sempre para fora de pé, em águas aparentemente calmas. 

E o fundo são remoinhos e fundões e monstros desconhecidos dos comuns mortais. Para ti, casa, castelo, rocha, trono, cadafalso. Aqui reinas, Minha Flutuante Majestade, sobre o belo e sobre o horrendo. Todos nós - fotografia, espelho e segredo - o teu Povo. O que, dia a dia, quantos deles sem intenção, continuas a salvar.

São mais palavras. Porque os olhos não te posso entregar, para que visses por eles o que eu vejo. E queria. Queria que pudesses saber da raiva de alguns gestos, de como enfurece não ser merecedor de assistir à arrumação do armário dos detergentes. Que é baixo e se conjuga com a tua proverbial incapacidade de dobrares os joelhos. De repente, o rapaz do espelho é o senhor da fotografia e há anos luz entre nós. Perco-te nesse espaço impenetrável da diferença da nossa condição. Resigno-me: São palavras e tu és vento.

Um dia, é possível que a tua carne me cante em tons outros, quiçá mais calmos, provavelmente mais lentos, e eu te fale da Alma. Somarei palavras ás folhas rasgadas, como se as colasse. Ora, como se me importasse como julgam as palavras. Não importo. 

Retomaremos a interminável discussão do Amor Eterno, morto; do Amor Incondicional, partilhado; do Amor Inevitável, que nos entregamos sem remissão, em dias marcados como se fosse um castigo: Toma, aqui tens a minha impossibilidade de não te Amar. A tua Cruz. 

A nossa conversa será arrastada, como pequenos seixos no leito do rio que corre em frente ao alpendre; pairará nas margens verdes, como as libelinhas; em ziguezague, como a abelha que nos entra pela janela aberta da cozinha, onde arrefece a tarte. Cheira a maçã e não nos calaremos sobre a Alma e o Amor. Até que eles possam acender-nos a pele, num súbito restolhar de flacidezes e vincos pronunciados nos rostos.

Ah, mas a língua, a língua é fresca e as mãos dadas são firmes. Conformados, baloiçaremos na inevitabilidade dessa entrega.

Podia dizer que te Amo por ser devoto dos teus glúteos. Ou que te vejo tão bela porque te olho a Alma. Invertia os fatores e continuaria tudo a fazer sentido. Seriam palavras, já sei. Essas que te maculam a íris quando me vês. As que, reunidas as exatas condições cósmicas, ainda te mentem sobre a minha idade. Podíamos, num assomo de loucura, dizer que nos vemos assim porque é isso que o Amor faz. Eu não vim dizer-te Dele ou da Alma! Só da carne, da pele e do desejo. As tuas e o meu.  

Sou devoto dos teus glúteos, sim! E tenho toda a nossa imensa Eternidade para te Amar. Inevitavelmente."

...

No derradeiro brinde dessa noite, calmos ou confusos, lembrarei a folha que o Velho dos Sapatos me entregou hoje. A que decidiu retirar da ordem caótica do seu aparentemente inesgotável molho de papeis. 

Haverá uma brisa, mesmo que se fechem todas as janelas, e permaneceremos calados, deixando todas as palavras para os poros e os músculos. Ainda que seja apenas a certeza do teu pé encostado à barriga da minha perna. Estás. Inevitável. < 35.

...

Soundtrack to B. < 35: I gotta have you, oh yes i do!

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