sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Nomes - RMS



Do espólio do Velho dos Sapatos, apanhado por acaso, e esquecimento do referido, enquanto se limpava mesas:

" Nomes - RMS

Várias vezes - em algumas manhãs muito cedo, no meio de uma neblina fumarenta; em dois ou três finais de tarde de Sol poente e corpos de sal; numa raríssima noite insone - as palavras voltaram à minha mente: não me escreveste um poema quando eu nasci.

Podias-me encontrar um lugar impenetravelmente escuro e totalmente silencioso. De uma ausência completa, consegues imaginar? Um sitio impossível, sem consequência nem História, em que não restasse mais nada senão eu diante do meu sentimento por ti.

Ainda que fechasse com força os olhos, a imagem seria clara na minha mente; e quando me tentasse esgueirar para coisas que me distraíssem - futebol, aposto! - elas seriam impensáveis, pois dos Universos material e espiritual e racional e qualquer outro que pudesse alguma vez ter existido, nada restaria que não o que me És. Mesmo aí, eu não teria palavras para dizer este Amor.

O que queria era ser Livre. Fosse e nada te custaria qualquer esforço, porque de tudo cuidaria. De forma que a tua vida seria um constante passeio por veredas floridas ou uma corrida pelo caminho que te apetecesse. Feliz seria eu, de te proporcionar até o que não soubesses ainda que desejavas.

Oh não, nunca cairias, nunca falharias, nunca perderias. Serias Perfeita, no Mundo Perfeito,  cheio de pessoas Perfeitas. Porque serias sempre tu a definir Perfeição e tudo se te submeteria em nome deste Amor. Que é só meu, mas é tanto e tão grande que dominaria todas as Coisas e Seres, incluindo os Entes que habitam as interdimensões espaciotemporais. E os Vampiros e os Magos também. Um ou outro Lobisomem é que poderia ser mais rebelde.

Só que me prendo. Travo esta batalha infinitamente, de mim para comigo, desde o momento em que, nascida, pudeste olhar-me. E eu descobri que a minha missão era a tua Felicidade e que isso me ia custar tudo o que alguma vez poderia ter tido. Consagrei-me nesse instante e deixei de saber dizer este Amor.

É por isso que povoas os meus piores pesadelos. És a minha fraqueza inultrapassável, a morte de toda a valentia e qualquer bravata. É de ti que rezam as lendas que me recuso a ouvir e é para ti que correm todos os males do Mundo: as pestes, os demónios tiranos, os feiticeiros malvados e os Homens de uma maneira geral.

Sou só este e tenho tanto medo de não ser suficiente. Sobretudo, tenho um pânico descontrolado de que tenhas medo. Do que seja. Por isso te ensino a fazer pazes com ele, a tratá-lo como a um amigo, a conhecê-lo. A enganá-lo, como eu faço a cada minuto a todos os pavores de que sofro por ti.

Ah mas nada de enganos, eu permaneço o herói de espada em punho e abdominais ao léu, o Campeão do Mundo de secar cabelos, o original do teu sentido de humor, o homem que descobriu que o Planeta acordou de pernas para o ar e as pessoas tinham que acordar rapidamente, mas com cuidado, antes que caíssem das suas camas no teto. Sou esses, ainda frescos, e também o porquinho Alfredo, o Burro Tójó, a galinha Hermengarda e a certeza de que perceberias que não faz mal desenhar horrivelmente, se te divertires.

E sou um tabefe que não esqueces até hoje. Nem eu. Contínuo a sentir o mesmo frémito de alivio e o mesmo arrependimento escondido. Veremos o que se sente num eventual próximo, nunca fora de questão.

Um dia serei só isso: memória. Não há como fugirmos, meu Amor. Nasci e nasceste, aí traçámos o meu Destino. Sou para ti, mas não posso ser Tudo Sempre. Porque inevitavelmente acabarei por quebrar a minha promessa e te faltarei.

Nesse tempo - oh sim, falemos de tempos imensamente longínquos - serás o que eu não pude ser: a fonte de toda a Felicidade. É só isso a que aspiro: construir a cada nega, a cada frustração que te imponho, a cada gargalhada, aquela que se bastará. Porque te Amo, é certo, mesmo que não consiga encarar de frente este Amor. Porque me mataria cedo.

És o Amor que não sei escrever. "

...

Soundtrack to RMS (with a drop of grief): What's a miracle?

13 comentários:

  1. Uma das mais belas declarações de AMOR que estes meus olhos,já algo cansados, puderam ler. Não posso deixar de citar o poeta quando escreve: "um filho é como um ramo despontado do tronco já maduro que sou eu;um filho é como um pássaro deitado no ninho da mulher que me escolheu"(JCAS)

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    1. Puxa, se te trouxe Ary dos Santos à memória...nop! Não mereço esse elogio. Mas obrigado na mesma. Vôvô? :)

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    2. Vôvô, sim senhor !!!

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  2. Caro Silva, fantástico! Grande declaração de amor que eu também gostaria de saber fazer. É por estas e por outras que continuarei a frequentar o seu 'estabelecimento'. Agora sim, acredito que, num comentário a um dos anteriores podcasts, alguém terá dito que o meu amigo é, de facto, quem melhor escreve entre os 3 Cavanis.
    Faxabor de continuar a existir. 1 abç.
    Luís Oliveira

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    1. Ora, simpatia sua, meu caro. Muito obrigado.
      E olhe, não tenho planos para deixar de existir, lá isso não. :) abraço.

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  3. Foda-se sr. Silva. Do que o Sr. é capaz para não falar na grande exibição do Herrera. :)

    O Lafoi já disse tudo. Parabéns por traduzir em palavras esses sentimentos e mais dificil, fazê-los chegar a quem de direito. Famelga bem resolvida.
    Grande malha, mesmo.

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    1. Não vi o Herrera :( mas só pode ter sido bom.
      Vocês estragam-me. E exageram. Continuem :))

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  4. Há prosas que se tornam mais belas que poemas.
    Há declarações de amor tão complexos como teoremas.
    Porque há quem jure que o amor mais não é que uma quimera,
    Como diz o anónimo, do que foste capaz para não falar do Herrera!

    Nesta tasca só se bebe vintage!!! Ganda Silva;)
    https://www.youtube.com/watch?v=K_bQ80xZNwI

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    1. Ui, quais vintage? Debêjenquando é cada tinto mais martelado... :)
      Obrigado Felisberto. E pela gorja também.

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