Há coisas que ganham um valor imenso uma vez ausentes, ou perdidas, ou pouco frequentes. Amores, liberdade, a mais nova atrelar-se à mais velha e os idosos darem por si sózinhos num Domingo de manhã.
SEGUNDO ATO:
Cenário: Quarto de dormir, com cama, duas mesinhas de cabeceira, psiché na parede oposta. Os estores manuais são levantados por um homem idoso e as janelas abertas.
- Ena, está Sol e quente lá fora. Bom para os ossos! A humidade estava a deixar-me maluco dos joelhos.
- Eles tinham dito que vinha aí o bom tempo. Até que enfim. Já estou pelos cabelos destes lenços de flanela e meias-calças de lã.
- Olha lá, as coisinhas foram laurear a pevide, estamos só os dois. Que tal pormos as dentaduras e irmos dar um giro? Podíamos até, não sei... - Cora ligeiramente, pigarreia.
- Achas? - Sorri, ignorando as gengivas despidas. - Já faz tanto tempo... Mas está Sol não é? Eu alinho! Íamos para a praia, pode ser que lá esteja ninguém a esta hora...Levo o crochet!
- Não dá! - Diz ele, a desilusão estampada nas rugas. - Não há bola hoje. É dia Santo.
- Bolas! Sem relato não é a mesma coisa ficarmos a apanhar Sol dentro do carro, virados para o mar. - Ela deixa cair os braços. Ameaça instalar-se um Domingo igual.
- É uma pena não gozarmos este Sol, velhota. - Sorri-lhe com ar maroto.
- Velhota é a tua tia, oh caquético. Podemos ir para o quintal, estrear os nossos chapéus de palha. - De repente, os olhos brilham-lhe. - Ou então... vamos ao shopping!
- Ao shopping? E o Sol? Só se for aquele que tem uma grande clarabóia.
- Sim, pode ser esse, tanto faz. Lojas e cinema?
- E double cheese bacon?
Nota cénica: Enquanto as personagens se vão tornando magicamente mais novas, caem pozinhos de perlimpimpim por todo o cenário, que roda.
Cenário: Quarto de dormir, com um sommier apenas, roupa espalhada pelo chão. A personagem feminina, no meio dos vinte, olha para o ecrã do computador pessoal e a masculina abre o armário da roupa. Ela usa uma tshirt dele, ele boxers justos.
- O "Insurgente"! - Diz ele da casa de banho. - É Domingo! Nada que implique pensar. Deve ter porrada e tiros e isso tudo. E até achámos piada ao primeiro. A historia é gira...
- Pode ser, tanto faz. Mas depois não te ponhas a analisar ok?
- Ora, claro que não. Mas ainda tem a Naomi Watts e a Kate Blanchet, certo?
- Sim. Mas vamos já, que te quero mostrar aquele vestido.
- Ok. Também quero que vejas as calças...
TERCEIRO ATO:
Cenário: Um centro comercial qualquer, de dimensões consideráveis. Ela prova um vestido florido, ele umas calças aparentemente de jogging, ou assim...
- Wow, mulher! Ficas um estoiro. - Podia ser apenas simpatia, se a língua não estivesse pendurada para fora da boca e os olhos em alvo.
- E as calças são giras e ficam-te mesmo bem.
- Pois, mas não sei. São demasiado "puto". Acho que não me vou sentir bem com isto. - Diz ele. Mas dúvida, hesita, tenta contrariar o maduro que o habita.
- Oh, eu cá não quero saber disso para nada. Se fosse a ti levava. - Responde ela, com a leveza de quem pratica o que prega, sem remorsos.
- Não sei, não sei. Acho que não. De qualquer maneira, temos que ir embora, está na hora do filme. - Ela corre para a caixa, ele pendura as calças com alguma mágoa.
Mudança de Cenário: Sala de cinema, 6 pessoas. A ação desenrola-se numa ilha no centro do palco, representando a cabeça de uma das personagens.
Caraças pa, isto era suposto ter mais murros e tiros e bordoada de três em pipa. Quem quer saber da profundidade das personagens num filme destes? Fico logo cheio de urticária quando me fazem lembrar os vampiróides existencialistas da moda, porra!
Cala-te meu! Deixa-te de merdas. O enredo disto até é interessante. Tens vergonha de também achares isso, não tens? Já te conheço...
Népias. Vergonha de quê? É aborrecimento mesmo. Diz lá que agora não desatava aquela ali ao estalo a toda a gente? Era mesmo o que esta coisa parecida com um argumento estava a pedir. E nem vamos falar das interpretações ok?
Mas estás parvo? O vinco da boca da Naomi sózinho interpreta melhor que vinte amigos teus do cinema independente. A verruga da Kate Blanchet é melhor atriz que qualquer menor de idade do Woody Allen.
Bah, estás só a contrariar. Nem digas a ninguém que vieste ver isto. E ainda vai haver um terceiro, credo! Ai de ti que me arrastes de novo.
Mas podes crer que arrasto. Agora quero saber o que acontece a seguir. Estás um velho chato, dass.
Velho é o teu tio. Para além de que eu sou tu. Toooooooma, queiras ou não queiras. Não tenho culpa que sejas esquizofrénico.
Esquizofrénico? Nós?
Ufa, the end, finalmente...
- E então? Filminho, não é amor? Mas vê-se bem, é entretido. - E sorri aquele sorriso de menina. Um que o deixa quase sempre à beira das lágrimas.- Não dizes nada? Que ar estranho. Não gostaste? Diz alguma coisa homem!
- Anda comigo. Vou comprar as putas das calças!
Cai o pano.
- Pois Silva, eu e o teatro, já se sabe...- Faz um gesto de desprezo com a mão. - Uma ou outra revista, ainda vá. Uma que nunca mais me esquece era a que tinha um número com o Max. Sabe quem era o Max? - E já está a segurar a gargalhada e o catarro. - O Bailinho da Madeira, chamava-se o quadro.
Damn it!
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