terça-feira, 7 de julho de 2015

A hora da raiva ou supostas considerações dos sobreviventes



Sinto mãos nos meus antebraços. Suportam-me. Por um lado, ainda bem. Porque me apetece mesmo não dar mais um passo. Cair aqui, neste exato sítio, e deixar-me morrer. Também é certo que me apertam e que vou ficar com os dedos marcados. A minha contagem de plaquetas já não se coaduna com apertões.

Esta é a hora do remorso. Por tudo o que não fiz por ti, para ti. Preferia estar a tratar da logística de todas as coisas que ainda faltam. Ou a pensar no que mudaria na nossa vida, na nossa casa, se voltasses mas já não te pudesses levantar da cama. Mas não voltarás e todos me dizem que não me preocupe com nada, eles resolvem. Sobram-me, por isso, minutos demasiados para ocupar com os gumes das coisas que ficaram por te fazer e dizer.

Apetece-me tomar chá e comer areias contigo. Arrependo-me de todos os dias em que não tive tempo para chá e areias. As coisas tão importantes que tomaram esse lugar, esses pedaços da minha vida, caíram contigo e partiram-se naquele soalho. Estão feitas em nada, porque sempre foram nada ao pé do teu chá e das tuas areias. Como pude ser tão descuidado e tão pouco lúcido? 

No fundo, no fundo, a culpa é tua. Que me ensinaste, ventos e marés depois, a entender que estarias sempre lá. Agora falhaste-me. Quebraste a promessa de que me sobreviverias, que não me obrigarias a viver este tempo neste Mundo onde já não estás. Eu que tinha sempre palavras, que me deliciava na minha irresponsabilidade de velho, estou mudo. Só sei dizer chá e areias.

E agora as mãos nos meus antebraços, as minhas novas pernas, empurram-me um pouco mais para a frente. Há uma expetativa perante mim, perante este que nada espera e já não pode desesperar. Irónico. Ei-los, os muitos microfones que me ligarão aos muitos milhões que escrutinam as minhas lágrimas, sedentos de poderem chorar comigo ou apenas desejosos de acompanharem a minha dor. Enraivece-me. Mesmo sabendo que não é justo, que não há culpa a atribuir-lhes. A ti sim. Porque não caminhas aqui ao lado, porque não me seguras o antebraço e tornaste impossível que o meu passo trôpego se amparasse no teu e, assim cambaleantes os dois, avançássemos pela eternidade.

Inspiro e oiço o meu próprio suspiro. Detenho-me, concentro-me, encarno o Homem de Estado. Não quero pena, nem solidariedade. Só despachar-me, passar desta raiva, apressar-me, que tenho chá e areias. Contigo. 

Dou dois passos sem apoio, pela dignidade. Olho de frente para os microfones, as luzes das transmissões, imagino os milhões de respiração cortada. Tu pousas o tabuleiro com as chávenas, eu digo:

- Ide todos para o caralho! Cambada de voyeurs tétricos.

Não me virão as palavras. Todos guardarão um respeitoso silêncio e uma sincera pena. Recolher-me-ei às mãos nos antebraços, no silêncio do insulto que, proferido, não direi.


... 

Não conheço, nunca falei com e confesso que não nutro particular apreço pela pessoa que me pôs a pensar os disparates acima. Trata-se pois de uma generalização, motivada pelo que suponho será a dor aumentada de quem não pode sofrer sozinho. E, evidentemente, de um puro exercício sem qualquer ponta de ligação com a realidade. Este é um esclarecimento que considero pertinente. Só isso.


4 comentários:

  1. Esse simplesmente deixa-me sem palavras... Obrigado eu, meu caro.
    Abraco

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  2. «Sinto mãos nos meus antebraços... avançássemos pela eternidade»

    Admirável descrição do declínio da vida...

    Em grande Silva.

    Abraço

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  3. Ontem arrepiei-me. No tétrico exercício voyeuristico da cobertura do funeral, lá ia o homem amparado pelos antebraços... Escrevi-o um dia antes. Ou descrevi-o, não sei. Mas pareceu-me genuinamente confortado pelo banho de multidão, o que me deixou contente. Tenho esta espécie de ternura inútil pelos velhos. Mesmo aqueles de quem não gosto assim tanto... Enfim, acho que me arrepiei comigo mesmo.
    Ah! Com tanta léria, ia-me passando. Obrigado Carrela. Um abraço.

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