Um papel esquecido na mesa do velhote dos sapatos:
És uma mulher, isso é certo. Compreende, ainda assim, a minha dificuldade em encarar com toda esta clareza o facto. Se te tentar explicar, direi que me nasceste tantas vezes que me perdi na tua idade.
Nasceste-me no Porto.
Pode ser só um truque da minha memória, mas dá igual. Foi na Ribeira que te pariram. Toda tu uma palavra: Filha. A um tempo o Amor maior, um segredo, a ameaça, o obstáculo, um medo. Derrotado por um sorriso simples e despreocupado.
Oh, se soubesses, pobre Mãe assustada, as coisas tão piores que eu já vi. Os sustos da minha vida, tão maiores que o pânico escondido dos catraios a saltarem da Ponte Dom Luis. Olha, lá vai outro a voar.
Também nasceste numa praia do Sul.
Eram os meus joelhos que tremiam então, tu só olhos e alegria ao Sol. E um lenço na cabeça. É provável que misture recordações, mas era Sol e Sul e mar e tu nascias. Adorável na esperteza saloia de todas as crianças, temperada por uma estranha sensibilidade que te fez olhar-me com um ar desconfiado. Sei que era suposto tratar-se de um momento importante, a reclamar todas as minhas aptidões de pessoa crescida. Ah, mas tínhamos tanto para brincar. E isso era tão mais divertido. E eficaz.
Nasceste-me numa água furtada minúscula, no arrabalde da periferia de Lisboa.
Concreta e inteira, tu. Insofismável presença absoluta a que tudo se condiciona. A Rainha dos olhos grandes, feita Princesa da nossa Eternidade. Os milhões de coisas que queria que soubesses, tão desinteressantes. Tu querida e, por vezes, até paciente. Eu entalado no meu duplo papel. É impressão minha talvez, mas naquele chão de alcatifa com pulgas assimilamo-nos. Permitimo-nos crescer um no outro.
Nasceste-me num pulo tolo para cima da cama, numa casa passageira da tua Cidade.
Uma brincadeira de menina ainda, na intimidade do quarto dos pais. E pronto, eras irrevogável. Minha.
Quando pensei que já não podias nascer mais, quando o orgulho de me vislumbrar em tiques de uma mulher tão completa me enchia mais do que é suportável, nasceste-me.
Era um aeroporto e partias. Porque o Mundo também te merece. Eu não consegui impedir uma lágrima da saudade que já tinha do pedaço de mim que embarcava.
Bom, um homem habitua-se: Nasces em cada regresso. Em todos os apertos no meu coração por cada um dos teus take-offs. Nas notícias que apanho, aparentemente pouco interessado. Na necessidade de saber de ti e na falta que me faz a carga da brigada ligeira pelas nossas escadas. Nasces-me de cada vez que te apanho sentada no degrau do quintal, de pijama ao Sol.
É por isso que não quero saber quantos anos terás feito, mesmo que mantenha uma aritmética exata sobre o assunto. É também este o motivo pelo qual não quero saber de outros temas. Porque és demasiado pequenina para eles. Estás ainda por nascer."
...
- Ah, encontrou-o, ainda bem. Bem me parecia que o tinha deixado para trás. Estava a catalogá-lo.
- Este é fácil, avôzinho. Filhos, certo?
- Há filhos fáceis, Silva? Aí está uma bela novidade. - E sai à frente do meu silêncio, no seu muito curto passo dorido.
Bola! Rais'parta a lágrima que teima em não cair nem secar no cato do olho (pareço o Bonga!).
ResponderEliminarÉ assim. Bocados da minha vida. Os meus amores, alguns. As minhas PESSOAS!
Bolas, coração de manteiga!
Obrigada. (Por isto, por aquilo, por tudo...) <3
Shhh, cala-te, não pareces nada o Bonga. Talvez se tivesses barba... :)
Eliminar<3
Hey! Get a rume! Fora de brincadeiras, a tua prosa é sempre de uma esmagadora beleza. Abraçom
ResponderEliminarGot it! Há unjanos :)
EliminarObrigado amigo, fico mesmo contente (e inchado).
Abração.
Mesmo de bigode e de garrafa de Gin!
ResponderEliminarNaaaa... os nossos rebentos ainda andam de biberão.
Parabéns Silva
Às vezes desconfio do que levam no biberão. Acho que vou começar a provar... :)
EliminarObrigado.
ResponderEliminarmuitos parabéns! a «ambos os dois» progenitores ;)
ps:
já te disse que deverias entrar em contacto com uma editora, não já? acho que sim... e olha que Ontem, já era tarde ;)
abr@ço
Miguel | Tomo III
Obrigado Miguel!
EliminarEditora? Pá, tábem, desde que seja mamalhuda :)))
Estava a brincar D.Maia, estava a brincar :)
Eliminar@ Silva
o que significa "mamalhuda"? o que é isso? é de comer? :)
abr@ço forte
(e pensa nisso. da editora e assim. sem "mamalhudas" pelo caminho. mas também não precisam de sair "ao pai" nesse aspecto)
Miguel | Tomo III
Diz que é umas vossas que carregam no peito algumas moças. Acho que é uma doença! :)
EliminarAbração.
Na Ribeira nasceu a minha mulher. Da ponte se atirou ela bastas vezes (do tabuleiro inferior, dáaa!), em busca de umas cinco croas para as iscas do "Dura", que eram bem melhores que as do "policia", e lá ia o almoço e o jantar todinho numa só dose...
ResponderEliminarNa Ribeira chegavam barcos rabelos carregados de sonhos, fome e miséria.
Barcaças de carvão, fruta e legumes, que homens e mulheres de cabazes na cabeça, pés descalços atravessavam em pranchas rombudas, que hoje seriam classificadas de património mundial e interditas á circulação! Do outro lado, em Gaia, aportavam barris de vinho do Porto com nomes ingleses...
Contudo creio bem que já não se nasce na... Ribeira!
Nasce pois. Só que de uma maneira mais...digital. Não quer dizer que seja pior.
EliminarObrigado pela excelente partilha Felisberto.
Abraço