terça-feira, 14 de maio de 2019

Casa Velha

(Inevitável e espesso, o silêncio vai escorrendo por entre as horas, as tarefas - reais ou inventadas - as ausências e tudo o mais que teimas em acumular para que se te encham os dias. Como magma incandescente, destrói as barreiras que laboriosamente ergueste. Um rio calmo, mas inexorável, serpenteando pelo vale, encontrando caminhos pelo meio das rochas, correndo tranquilo, sabedor de que será mar.

Ei-lo, como sabias que estaria, esteve sempre, estará, virá, tarde ou cedo: o silêncio perante ti. O que resta.)

...

A ver se consigo explicar:

É como um velho paço senhorial que se esboroa. Baço dos anos, ganhando o contorno da paisagem, do mato que o vai lentamente engolindo, camuflado pelo verdete nas paredes de pedras grandes. O torreão Sul já sem teto que se note, deixando entrar toda a luz do Universo, para que inunde as clarabóias e os ninhos de andorinha em pleno salão nobre.

Valham os pássaros e bichos rasteiros que se esgueiram entre cacos de mobília, agitando os fetos que comeram as tapeçarias antigas, para quebrarem o silêncio. A Vida persiste em formas outras, mesmo que as dobradiças de aço que resistem nas ombreiras chorem de saudades nossas.

Há crianças que passam as tardes do início do Verão a correr pelas colinas suaves, enchendo a charneca de gritos alegres e embarcando em expedições pelo corpo principal do edifício. Ali, onde ainda há quadros pendurados e fotografias que se rebelam contra a humidade; quartos onde ainda se sussurra a nossa história, ora alegre, ora um pranto, um minuto festa, outro tragédia, uma gargalhada só.

Do que pudemos deixar descobrem quem querem que tenhamos sido. Luzes no céu, Santos, dores reminiscentes que não podem explicar, água nos olhos dos adultos, lembranças vagas de fumo e produtos adicionais. E silêncio. O espesso silêncio que a simples repetição dos nossos nomes faz descer sobre a parte conhecida do Cosmos.

Designados proprietários da enorme chave de ferro que continua abrindo a porta desta aventura, sabem exatamente onde encontrar os esparsos sinais de vida na Casa Velha.

Ao fim do dia, correndo livres por onde é provável que tenha sido o jardim de rosas brancas, regressam à Casa Nova. Paredes meias, o mesmo território, um planeta diferente. E contam em algazarra as descobertas - um penico debaixo da cama, no quarto colado à parede Norte, aquele que ainda tem uma cómoda - puxam pela memória dos pais, detetam-lhes as incongruências e respeitam os silêncios magoados. Sempre ele, escorrendo como magma.

Aprendem-nos.

...

A ver se consigo explicar:

Um velho de tez por algum motivo tisnada, seco, de rugas fundas, segura com as duas mãos o chapéu preto à frente do umbigo. Um fato de três peças negro, a camisa branca, cabelo nenhum, muito direito contra a luz que se despede de uma casa velha, a cair lentamente em grandes pedaços.

Uma revoada de putos dispara de dentro do edifício na sua direção. Diríamos um enxame de abelhas a rodear um girassol único, grande e cansado. Levam-no pela mão, falando todos ao mesmo tempo, cada um como se tivesse uma etiqueta que lhe marca a proveniência, um traço distintivo, de fábrica, que na maior parte das vezes evita que lhes pergunte: e tu, de quem és? Ouve-se ao longe, enquanto o chapéu já vai de cabeça em cabeça: sim, um penico!

Deixam-no numa poltrona e, ainda que já cá não estejamos para ver quando acontecer, virá uma velha de vestido florido sentar-se ao seu colo. Soltarão ambos um gemido de articulações gastas e joelhos abusados e os outros estarão ocupados a temperar o resto das carnes, enquanto os miúdos lavam as mãos. Partilharão um breve momento de silêncio. A Casa Velha deixará cair uma telha. Nada a dizer.

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A ver se consigo explicar:

Olá, sou eu. Como estamos hoje, meus Amores?

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4 comentários:

  1. Comentar este texto é como tentar decifrar um quadro. Figurativo não é. Há partes que nos parecem reais mas mais à frente já podem ser metáforas. Pedaços de memória que não vão voltar. Por momentos pensamos que entendemos a sequência de palavras, a narração parece correr num sentido lógico mas, de repente “quem és? Ninguém, respondeu o romeiro”! Novos, velhos e assim-assim. Entramos no realismo mas logo, logo… lá cai mais uma telha. De qualquer maneira gosto da forma como brinca com a adjetivação e como nos mantém presos à história. Gosto muito de o ler. “One day i know we will meet again”. Sim pode ser já no próximo Dia do Clube.
    Abraço

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    1. Seguramente. Nesse ou em outro dia qualquer. Como sabe, gosto muito de o ver por cá. Abraço.

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